TerraTreva #1 - Um começo no exílio
Assim inauguro a minha newsletter, na qual divido com vocês o que tenho feito, lido, visto e escrito. Nesta edição, um relato dos primeiros dias em Alcalá de Henares, onde curso um pós-doc
Please allow me to introduce myself
Antes de mais nada, caso você não me conheça, me apresento. Meu nome é Oscar Nestarez e minha vida orbita as histórias de horror. Principalmente na literatura, que é meu campo de trabalho e de pesquisa acadêmica, mas não só. Amo todo tipo de assombro e perturbação, independentemente da forma artística.
Tenho quatro livros de ficção publicados - duas coletâneas de contos (Horror adentro, de 2016, e O breu povoado, de 2022), uma novela (Claroscuro, de 2021) e um romance (Bile negra, de 2018, com uma nova edição em 2023). Também organizei, ao lado do Júlio França, professor da UERJ, a antologia Tênebra - narrativas brasileiras de horror [1839-1899], entre vários outros trabalhos. Fiz mestrado em literatura e crítica literária na PUC-SP, doutorado em estudos comparados de literaturas de língua portuguesa na FFLCH-USP e neste momento estou cursando um pós-doutorado na Universidad de Alcalá, na Espanha. Também sou tradutor e tenho uma coluna mensal na revista Galileu. Se você quiser conhecer mais sobre meu trabalho, te convido a acessar meu site.
O que você vai ver por aqui?
Bom, agora, ao que interessa: inspirado por grandes amigas e amigos - principalemente a Ana Rüsche e o Cristhiano Aguiar -, e doido pra compartilhar algumas experiências, tomei vergonha e coloquei em pé esta newsletter. Nela, vou te atualizar quinzenalmente sobre trabalhos, pesquisas e vivências no geral. O eixo de tudo, claro, será o horror e a perturbação, nas mais diversas formas.
Não falarei só de arte; por exemplo, daqui a algumas semanas farei uma viagem à Transilvânia, seguindo mais ou menos o roteiro do Jonathan Harker no Drácula, de Bram Stoker, já perto do inverno. E com certeza terei alguns arrepios pra compartilhar. Mas tudo a seu tempo! Antes, o que aconteceu de importante nas últimas semanas.
Pós-doutorado na Universidad de Alcalá de Henares
A grande experiência recente que tenho pra te contar é minha mudança pra Alcalá de Henares, na Espanha. Vim pra cá no final de outubro, dia 31, pra fazer um pós-doutorado sob a supervisão do David Roas e da Teresa López Pellisa. Se você não os conhece, uma rápida apresentação: o Roas é um renomado pesquisador de literatura fantástica, e seu livro A ameaça do fantástico está em dez de dez bibliografias de estudos na área. A López Pellisa é referência em estudos de ficção científica e distopia, em especial de autoria feminina. Sob a batuta deles, vim pesquisar os diálogos possíveis entre contos assustadores de duas autoras: nossa Lygia Fagundes Telles e a mexicana Amparo Dávila. Essa ideia inicial já mudou, mas falarei disso numa próxima edição.
Quanto a Alcalá de Henares: estou adorando passar esse tempo aqui. A cidade fica a pouco mais de 20 km de Madri e minha primeira impressão, ao chegar, foi a melhor possível. O centro histórico, onde fica parte do campus da Universidad de Alcalá, é charmoso, todo marcado pelo barroco madrilhenho (tijolinhos e pedras esculpidas nas fachadas, arcos romanos por todos os lados) e também algo da arquitetura gótica.
A história da cidade vai longe, mas acho legal dizer que Alcalá, durante o Império Romano, se chamava Complutum, e era super importante pela localização estratégica. Hoje ainda existem ruínas desses tempos, um pouco afastadas do centro histórico. Fui visitá-las e há pouco a se ver, mas o aroma de tempos distantes está no ar.
Alcalá, cidade literária
Agora, o mais relevante fato alcalaíno (podia ser alcalino, né?): aqui nasceu Miguel de Cervantes. Isso marca a cidade de muitas formas. A figura do maior escritor espanhol está por todos os lados. Pra você ter uma ideia, escrevo este texto na Biblioteca Cervantina da Universidad de Alcalá. A praça principal leva o nome de Cervantes e a casa onde ele nasceu está sempre cheia de turistas (fui um deles, claro).
Na cidade ainda se entrega, todo dia 23 de abril (dia do livro), o prêmio Cervantes, o principal reconhecimento literário em língua espanhola. Neste ano, o vencedor foi o espanhol Luís Mateo Díez, que nunca li - mas que, segundo o David Roas, tem um trabalho que perpassa o fantástico. Na Universidad de Alcalá também estudaram titãs nacionais, como Lope de Vega, Quevedo, Calderón de la Barca, Tirso de Molina, entre outros. E por ela passou Santo Inácio de Loyola, veja só.
A universidade e o claustro onde vivo
Da mesma forma, a história da Universidad de Alcalá vai longe. Foi fundada no século 16 pelo cardeal Francisco Jiménez de Cisneros, que, cabe dizer, foi o terceiro inquisidor geral de Castela (MUAHAHAHA). A concepção de Cisneros era de literalmente criar uma cidade universitária, e já de início ela foi inaugurada com oito colégios (faculdades) - pouco tempo depois, tinha 40. Até meados do século 19, foi uma das mais importantes da Europa.
Mas aos poucos foi perdendo prestígio, à medida que o governo espanhol, precisando de dinheiro, foi vendendo edifícios; até que foi fechada no fim do século 19. Então, um grupo de endinheirados da cidade se reuniu pra adquirir os prédios e os alugou ao governo por 1 euro (isso mesmo) - desde que se recriasse a universidade. Isso demorou para acontecer. Só na década de 1970 a universidade voltou a abrir as portas, mas recuperou o prestígio - e é gratuita, como a maioria das universidades espanholas.
Nos quase seis meses que passarei aqui, viverei na residência de San Ildefonso, que fica dentro do Rectorado (o prédio principal da universidade). Apelidei carinhosamente meu quarto de “claustro”, porque é bem isso que parece: além de ser simples (mas também confortável), tem paredes super espessas e uma janela pela qual a luz entra como uma bênção a quem se guarda para o Senhor.
A localização não poderia ser melhor, o wifi é ótimo e tenho direito a um cafezinho da manhã simprão: uma torrada com purê de tomate ou com manteiga e geléia, mais um café. Em terras onde a vida acontece em euro, vem muito bem a calhar. Agora, quinze dias depois de chegar, já me sinto praticamente “em casa”. Consegui organizar as atividades diárias: achei uma academia pra treinar (tipo smart fit), elegi alguns restaurantes como preferidos, estabeleci uma rotina de trabalho (trouxe bastante coisa do Brasil), e por aí vai. E hoje, pela primeira vez desde que cheguei, lavarei roupa!
Paris e SWANS
Caminho pro final desta primeira edição, mas antes quero comentar sobre minha ida a Paris, onde passei quatro dias. Tenho uma relação de bastante afeto com a cidade, na qual morei por oito meses quando tinha 27 anos. Sempre que o bolso permite, passo por lá. Desta vez, estava linda como de costume, e chuvosa; porém muito barulhenta - talvez barulhenta como sempre também, mas eu devo ter me desacostumado. Alcalá é uma calmaria…
Fui a Paris pra ver o Swans, banda que nunca esteve no Brasil e que, reza a lenda, faz shows inesquecíveis. Lenda corretíssima pra mim. Não me lembro de nada mais pesado, mais intenso, mais barulhento - e olha que o que mais faço é ir a show pesados, intensos, barulhentos. Mas ali o patamar é outro. Quarenta anos de história nas mãos do Michael Gira, um sujeito assustador de verdade, sem fazer força (recomendo você espiar no Google um pouco mais sobre ele).
Mais de duas horas de show e só sete músicas no setlist, o que dá a medida das jornadas que compuseram a noite. Sempre com pouquíssimas notas, sempre na cadência de um titã caminhando, sempre num crescendo até a pura catarse. E pura catarse foi - Swans, 13 de novembro, no Elysée Montmartre. Em tempo: já escrevi, pra Galileu, sobre música de horror, e o Swans tava no centro dessa conversa. Leia aqui.
Ah, em Paris ainda almocei com a Beatriz Saldanha, grande pesquisadora de cinema de horror, que está por lá fazendo doutorado sanduíche. Fomos ao Chez Gladines, em Butte aux Cailles, que serve comida do país basco. Era um preferido meu quando morava lá, e continua sendo depois desse almoço.
Na cabeceira
Concluindo toda edição, vou compartilhar com vocês o que ando lendo. Acabei de terminar Te di ojos y miraste las tinieblas, de Irene Solà (sem edição no BR), e agora leio A outra filha, da Annie Ernaux, Le procés de Giles de Rais, de Georges Bataille (sem edição no BR), La habitación de Nona, de Cristina Fernández Cubas (sem edição no BR), e Zalomar, da Gertrudes Raposo Sayão, que ninguém vai conhecer, quando deveria ser o contrário. Na próxima edição trarei comentários sobre as leituras.
É isso! Te agradeço por ter lido até aqui, e te agradecerei ainda mais por sugestões e comentários. Daqui a duas semanas eu volto. Até já já!
Bem-vindo, Oscar! Vida longa e próspera à news, vai ser demais acompanhar sua aventura espanhola.
Adorei! Longa vida à Terra Treva 🖤