TerraTreva #11 Um conto inédito que nasceu (e se passa) na Transilvânia
Na primeira edição da minha newsletter em terras brasileiras, te convido a ler uma história de horror que comecei a escrever na Romênia e concluí por aqui
Cá estamos! De volta a SP, ainda nos aclimatando, mas felizes da vida por reencontrarmos pessoas amadas, comidas queridas, espaços idolatrados (minha cama, por exemplo, quanta falta fez!). Como ainda estou processando o retorno, escreverei a respeito dele na próxima edição da newsletter.
Nesta, trago um conto inédito que comecei a rascunhar durante minha viagem à Transilvânia, em dezembro passado, e cuja escrita retomei agora, depois de voltar ao Brasil. É uma história de horror elaborada a partir de conflitos geracionais. É também uma história de confronto ente imaginação e racionalidade. Sei que já escrevi muito sobre a viagem, mas agora, pela via da ficção, pude dar curso livre aos devaneios que senti por lá — com o acréscimo de algumas fotos que tirei. Aproveito para agradecer à Zaia my girl pela leitura e por sugestões cirúrgicas S2.
Espero que você goste! E que me conte o que achou nos comentários.
Boa leitura,
Oscar
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Transelvânia
O painel luminoso à frente o paralisou. Congelou ali mesmo onde estava, mochila às costas e puxando a maleta de mão, enquanto encarava as quatro letras daquela palavra tão evocativa, com a qual sonhava desde a infância. “Cluj”. Em silêncio, revolveu-a com a língua, sentindo seu sabor estranho. Depois a pronunciou como num encantamento. Três vezes o fez e no segundo seguinte estava longe dali, rumo às noites mágicas de menino, atravessando os Cárpatos, cruzando o passo Borgo, erguendo os olhos para o céu sem estrelas perfurado pelas montanhas cinzentas, no aguardo da chama azulada em meio aos esqueletos de árvores que mostraria o
— Pai?
A voz de Natália soou junto com um toque nas suas costas. Ela apareceu ao seu lado, olhou-o por um segundo ou menos e depois espichou a cabeça adiante. A fila de embarque começava a avançar. A filha não sorriu. Só deu um passo à frente e voltou a encarar o celular na mão do braço direito em L; a eterna posição em L. Não se lembrava do braço dela em outra posição. Talvez já estivesse ossificado.
Pensou em dizer algo. Seria bom extravasar um pouco da alegria que sentia desde aquela manhã, quando deixaram o hostel de Madri rumo ao aeroporto – alegria agora inflamada pela palavra no painel. Abriu a boca, mas a fechou a seguir: Natália acabara de colocar os fones de ouvido com orelhas de gato roxas. Eram do tipo que isolavam qualquer ruído.
Olhou-a por bem mais do que um segundo e pensou em Amália. Com frequência pensava na ex-esposa quando observava a filha. Pela semelhança física, claro: aquele perfil bem traçado, de nariz arrebitado e lábios finos, eram da mãe, embora os olhos, rasgados e quase verdes, fossem mais seus. Mas também pela personalidade. Natália tinha o mesmo espírito prático e decidido da mãe. Em troca, porém, parecia ter recebido uma porção extra de indiferença às sutilezas; ou de insensibilidade, o que dava no mesmo. Quando ainda estavam juntos, Amália demorava, mas percebia os sinais de que o ânimo de Eduardo havia mudado. Conhecendo a natureza retraída do então marido, incitava-o a falar.
Olhou Natália de relance; ela sorria, a cabeça pendendo para o celular. Ao seu lado, mas tão longe.
A fila seguia devagar, emperrada por um funcionário de expressão contrariada que, com movimentos preguiçosos, verificava passagens e documentos. Isso que dava viajar por companhia low cost. Mas a Wizz Air era a única que fazia o trajeto Madri - Cluj Napoca – ou Klausenburg, como mais uma vez Eduardo explicara a Natália no trem até o aeroporto de Barajas. Klausenburg era o nome da cidade no fim do século 19, quando Bram Stoker escreveu Drácula, continuou, indiferente ao silêncio da filha. Os dois estavam de pé no vagão cheio, um em frente ao outro. Pelo menos ela o olhava e balançava a cabeça – ou talvez fossem os sacolejos do trem. Era a terceira ou quarta vez que Eduardo recapitulava o trajeto pela Transilvânia. Sim, o roteiro de Jonathan Harker, Natália enfim falou, os olhos meio escondidos nas pálpebras de cima.
— Você acha muito chato?
— É que ainda não terminei o livro.
“Mas essa parte é o começo”, pensou em dizer e se segurou. Ela nem tinha começado a ler. Da mãe também herdara o desinteresse pelos livros.
— Bom, acho que vamos pergar neve. Você queria ver neve, né?
Os olhos dela enfim se acenderam.
— E um castelo, também.
Natália sorriu pela primeira vez naquela manhã, o aparelho nos dentes reluzindo à luz branca do vagão.
— E depois Londres, né?
— Sim. Vamos até Bucareste e lá pegamos o voo.
Ela sorriu de novo e bateu duas palminhas, como fazia desde que tinha seis ou sete anos. Essa espontaneidade, também de Amália, o encantava. Pensou em abraçá-la quando uma voz sintetizada anunciou o terminal 2, onde deveriam descer.
Agora se acomodavam nas cadeiras apertadas do avião e o sorriso havia se dissipado fazia tempo. Natália continuou com os fones enquanto o comissário de bordo passava instruções de segurança. Eduardo, por sua vez, ouviu com deleite o romeno do rapaz magro, quase um adolescente. Saboreou aquele idioma estranho, ao mesmo tempo tão distante e tão familiar do português.
Compreendeu uma coisa ou outra e de novo sua imaginação recuou. Agora até as tardes na biblioteca da Letras da USP, para onde escapava depois das aulas na faculdade de administração, às voltas com um dicionário romeno-português – o único que havia no acervo. “Securitate”, “avion”, “centura de siguranta”; e não via a hora de encontrar velhas amigas como “castelul”, “vampir”, “dracul”... Minutos depois, o avião decolou. Olhou para Natália: antes de a aeronave atravessar as nuvens baixas e carrancudas, ela já dormia, a cabeça encostada na janela e não em seu ombro.
***
— Um Renault Arkana – Eduardo apertou o volante com o motor já ligado. Virou-se para a filha e sorriu. — Arkana! Que nome pra nossa carruagem! Você não acha, Táli?
Natália sorriu e concordou, meio sem jeito. “Carruagem”? Não conseguia alcançar o pai naqueles devaneios, que agora estavam ainda mais efusivos. Era um carro ok, robusto, serviria bem para a viagem que tinham à frente. A longa viagem. A julgar pelo que ele não se cansava de repetir, seriam quase mil quilômetros em cinco dias. Mil quilômetros e depois Londres, onde encontraria a Ju e a Ka, que passavam o mês lá para estudar inglês.
Queria ter ido com elas. Mas o pai e a mãe vetaram, não conseguiriam pagar uma viagem daquelas. Que a filha ficasse feliz por Eduardo conseguir levá-la à Europa. Sim, claro, ela tinha ficado muito feliz. Paris era mesmo linda, ainda que fedida, e Madri, impressionante. Mas a Transilvânia? Ninguém ia para lá.
“O seu pai quer ir”, disse a mãe ao ouvir a reclamação, durante um jantar em seu apartamento. “E vai ser legal vocês passarem esse tempo juntos.” “Legal pra quem?” Amália a fuzilou com o olhar, mas não precisou adverti-la. “Ele é seu pai e não vai deixar de ser. É meio avoado, mas é um homem bom e te ama”. Natália sabia disso. Só não tinha culpa por ele ser tão desligado – ou ligado demais em si mesmo. Parecia amar mais o próprio universo íntimo do que as pessoas aqui fora. A mãe também sabia, claro. Mas a mãe podia se separar dele; ela, não. Aceitara, afinal. Se o preço de viajar à Europa era passar alguns dias em um lugar bizarro, fazer o quê.
O pai acelerou o carro e saiu do pátio da locadora enquanto Natália olhava pela janela. A paisagem não era bonita: algumas poucas casas sem graça espalhadas por uma planície cinzenta, sob um céu da mesma cor. Nada do esplendor de Madri, do agito da Gran Vía, da Plaza Mayor, tão ampla. Pelo menos Cluj estava mais fria – o termômetro do painel marcava três graus e eram só quatro da tarde. Ele tinha razão, talvez pegassem neve.
— O que você quer ouvir? – Eduardo seguia devagar, atento ao GPS. Um carro os ultrapassou buzinando. — São duas horas até Bistrita.
Natália deu de ombros.
— Posso colocar minha playlist de vampiros?
Deu de ombros de novo. Sabia que ele a sugeriria, como sabia qual música tocaria a seguir: a percussão em contratempo, depois as três notas descendentes no baixo, e então o vocal cavernoso acompanhado pela voz rouca e desafinada do pai: “White on white, translucent black capes…”. Ele cantaria Bela Lugosi’s dead inteira. Era incapaz de não fazê-lo.
Respirou fundo e olhou pela janela. Haviam deixado Cluj para trás e agora avançavam por uma estrada sinuosa. O pai acelerava, mais confiante em si e na estrada. Seguiam pela única pista, sem acostamento, e ao menos o asfalto era bom. Pela janela, nada de muito interessante: esqueletos e mais esqueletos de árvores a perder de vista, escalando as montanhas distantes. Aos poucos, a paisagem se apagava: a tarde deslizava na noite e ainda nem eram cinco horas.
Estavam há oito dias viajando e, ao chegar, Natália se encantara com a paisagem invernal de Paris, depois de Madri; mas aquilo não demorou a perder a graça. Tudo tinha a mesma cor escurecida, morta. E anoitecia cedo, também. Já o frio, ah sim, o frio a encantava. Não sentia falta alguma do bafo quente que soprava em Belo Horizonte fazia meses. E a Transilvânia estava gelada… Talvez a viagem não fosse de todo mal.
— Olha aquilo!
O pai apontava à frente, os olhos arregalados e o sorriso incontido. No horizonte, pairando acima da névoa, uma fileira de montanhas despontou mais escura que o céu.
— São os Cárpatos – a voz de Eduardo parecia embargada.
— Como você sabe?
— Pelo tamanho, só podem ser. Amanhã a gente vai atravessar o passo Borgo, bem no meio das montanhas – deu três tapinhas na direção. — Ou o passo Tihuta, pros romenos.
Sim, ela sabia. Não porque tivesse lido o maldito livro, mas porque o pai repetiu tantas e tantas vezes. Desde o começo da viagem ele parecia estar em um tipo de transe. Quase todas as noites, antes de dormirem, ela o ouvia repetir o trajeto como se rezasse. Parecia querer se certificar de que de fato iriam. Natália decorou o percurso: primeira parada, Bistrita, onde Jonathan Harker desembarcou do trem vindo de Budapeste. Dormiriam, inclusive, no hotel Coroana de Aur – ou Coroa de Ouro, o nome da hospedagem onde Harker passou a noite e recebeu um crucifixo de uma velha supersticiosa. Depois iriam até a tal da passagem Borgo, o desfiladeiro onde a carruagem vinda de Klausenburg deixou o Harker para que o transporte do conde Drácula o buscasse. O castelo, como descrito no livro, não existia. Então ali terminaria a parte literária da viagem e depois começaria o trecho histórico. Eles iriam em busca do Vlad, o empalador. Sim, Natália sabia de tudo isso. Sua memória era boa.
— Você não tá sentindo?
Mas imaginação não era seu forte.
— O quê?
— A atmosfera… Tem alguma coisa aqui.
— As janelas tão fechadas – riu para si mesma.
O pai suspirou e a música mudou. Um tecladinho começou a soar e logo depois foi encoberto por guitarras distorcidas.
— Ah, não, pai, coisa pesada, não.
— Só essa, por favor. É Wolf Moon, do Type O Negative, e cai bem pra ocasião…
Natália não respondeu. Destravou o celular: sem sinal, claro. Não ativaria o roaming, o pai a mataria. Pela janela, a noite já ia baixando. As montanhas ao longe desapareceram enquanto os dois atravessavam uma cidadezinha, depois outra e outra – ou melhor, amontoados tristes de casas simples. Mal cruzavam com veículos. Ela tinha razão. Ninguém visitava aquele lugar.
***
Ainda custava a acreditar: era melhor do que imaginara. A própria paisagem estava arrepiada, um monumental frisson, as árvores nuas como grandes pelos erguidos na tez da terra. O horizonte, até onde podia enxergá-lo, parecia eletrizado; e aquela estrada sinuosa e vazia o embalava, enfeitiçava. De quando em quando atravessavam vilarejos medievais de nomes estranhos, alguns dominados por cúpulas de igrejas ortodoxas, outros com igrejas fortificadas – massas negras e austeras de séculos de idade assomando contra o céu. E que azul era aquele ao redor, que o anoitecer ia dissolvendo? Parecia cobalto. Estava aceso, a aura de uma terra mística.
Teve de se esforçar para prestar atenção ao caminho. O carro era automático, então aproveitou para tirar algumas fotos antes de o sol se esconder de vez. A filha reclamou. Pensou em pedir para ela, mas o rosto de Natália estava fechado para qualquer transação.
Entraram em Bistrita já com a noite feita. Em poucos minutos estacionaram à frente do Coroana de Aur, um edifício opulento vindo direto dos anos 1970. A impressão se manteve no amplo saguão do hotel, todo acarpetado e com móveis de madeira clara. À exceção da recepcionista que os olhava sorridente, estava vazio. Como a estrada estivera vazia e, salvo um ou outro carro nas ruas, a própria cidade.
“Hoje é feriado”, explicou a atendente em um inglês passável, como o do próprio Eduardo. “Dia nacional da Romênia”. Era isso, então. Encontrariam algum lugar para comer? “Não, está tudo fechado, mas o restaurante do hotel ficaria aberto até as 22h.” Ouviu o suspiro de contrariedade da filha e evitou olhá-la. Não queria dissipar o encantamento que o arrebatara durante a viagem.
Ao atravessarem o saguão na direção do elevador, Eduardo se sobressaltou.
— O “salão Jonathan Harker”!
Estava à esqueda, uma porta envidraçada.
— É nosso restaurante – lançou a moça lá da recepção.
Tinha lido sobre ele. Assim como batizaram o hotel com inspiração no romance de Bram Stoker, os proprietários criaram um restaurante temático para aludir à hospedagem em que Harker dormira em Klausenburg.
Eduardo entrabriu a porta e Natália o seguiu. Um salão amplo na penumbra, mal iluminado por arandelas com lâmpadas que imitavam chamas, de luz baixa. Ao fundo, algumas pessoas encostadas contra a parede, outras sentadas. Pareciam imóveis, era estranho.
Eduardo se aproximou e soltou uma interjeição de surpresa: eram manequins trajados com roupas medievais. A filha riu.
— Que coisa brega.
— É, é um pouco demais.
Aproximaram-se dos bonecos e o constrangimento deu lugar ao temor. Nos rostos lisos, alguém havia desenhado, ou rascunhado, traços grotescos. Olhos arregalados, bocas desproporcionais, narizes bulbosos. Eram expressões de pânico mal ajambradas, pintadas com pressa, como se o artista precisasse fugir. À esquerda, em um ponto escuro entre os fachos das arandelas, erguia-se uma figura maior – ameaçadora, pensou Eduardo. Caminhou até ali enquanto a filha encarava de perto os manequins rabiscados. Quando seus olhos se acostumaram à penumbra, reconheceu-a de imediato. O adorno na cabeça, o bigode extenso e escuro, os olhos obcecados – desta vez desenhados com perfeição e reverência.
— É o Vlad, né?
Sobressaltou-se; Natália estava a seu lado.
— Sim, o próprio.
Não foi capaz de encará-lo por muito tempo. Aquela fixidez o incomodou; o contraste entre a composição daquele rosto e dos outros manequins o inquietou. Em silêncio, pegou o braço da filha e a conduziu até a saída do restaurante. Pediriam algo no quarto.
***
Depois de jantar, saíram para conhecer os arredores. A noite estava gelada, e o céu, cravejado de estrelas – sem sinal de neve. Divertiram-se soprando vapores rodopiantes um no outro enquanto caminhavam pelas ruas vazias de Bistrita, animados por aqueles inéditos graus abaixo de zero: muitos, com certeza. Natália fechou zíper do casaco até o meio do rosto e enfiou o gorro com mais força na cabeça. Será que em Londres fazia tanto frio? Duvidava. As amigas ficariam impressionadas.
A trégua, porém, foi curta. A cidade estava morta, muda, desaparecida. Só as estrelas e os postes continuavam acesos. Adivinhou que seria uma noite perdida. Andariam sem rumo até darem meia volta, já petrificados de frio, rumo ao hotel. Passou a pisar duro, como fazia para anunciar sua contrariedade ao mundo. Estavam em uma avenida deserta, e à esquerda, ao longe, parecia haver uma praça com uma espécie de monumento.
— Vamos só até lá, depois a gente volta.
Natália abria a boca para reclamar quando um som a impediu. Um rumor vago, distante, vindo do lado direito da avenida. Virou-se para lá e o rumor se converteu em pancadas ritmadas em meio a um vozerio; a uma cantoria. Ao longe, fagulhas surgiram, dançantes, como se algumas estrelas tivessem caído e se debatessem no asfalto. Muitas estrelas, na verdade, e coordenadas, sacudindo síncronas na escuridão. Delas vinha um canto áspero.
— É uma procissão?
— Acho que um desfile – o pai tinha a expressão comovida de antes.
Tinha razão. Banhadas pelas luzes dos postes mais próximos, fileiras e mais fileiras de homens fardados vieram marchando, empunhando tochas. Vinham cantando, afinados até, o que devia ser o hino do país. Claro, o dia nacional da Romênia. Natália olhou ao redor: as ruas continuavam vazias. Além deles, ninguém testemunhava o desfile. Que pena, era bonito de se ver e ouvir.
O batalhão – porque devia se um batalhão – se aproximava. Já podia ver seus rostos severos, os redemoinhos de vapor expelidos por suas bocas enquanto cantavam. Olhavam sem piscar à frente, queixos erguidos e peitos estufados, os coturnos surrando o chão em sincronia. Procurou o celular no bolso e tirou uma das luvas para fazer fotos. E um vídeo, claro, para pegar a música. Postaria no Instagram e enviaria às meninas assim que voltasse para o wifi. Olhava para a tela buscando o melhor ângulo quando um dos soldados se virou para eles – para ela.
***
Eduardo devolveu a mirada do homem. Era um rosto diferente. De pele alvíssima, tinha os olhos bem próximos um do outro, o nariz portentoso e a boca pequena, de lábios fechados, comprimidos, enquanto os outros cantavam.
Sustentou o olhar até aquele rosto se converter em uma aberração. Ao perceberem Natália, os olhos do soldado começaram a se mover um na direção do outro. Aproximaram-se, juntaram-se até formar um grande globo avermelhado no meio da cabeça: um cíclope sangrento. A boca pequena se entreabriu e dela saiu uma língua negra varando o ar, faminta.
No segundo seguinte, porém, sua expressão voltou ao normal. Um soldado de rosto exótico, olhando-os com severidade. Num impulso, Eduardo trouxe a filha para trás de si.
— O que foi? – estava contrariada, o pai tinha estragado sua filmagem.
— Você não viu?
— O quê?
— O rosto daquele homem.
O soldado já se afastava. O desfile também se perdia na noite.
— Poxa, pai, eu tava filmando.
Pensou em explicar e logo entendeu que seria absurdo. A filha o ridicularizaria, como já tinha feito antes. Mas vira o que vira; talvez uma distorção causada pelo calor das tochas, como o asfalto que parece derreter nas corridas de Fórmula 1. Ou talvez estivesse mesmo sugestionado pela atmosfera, arrebatado pelos devaneios de menino, que na Transilvânia o tomavam por completo. Melhor voltar para o hotel, amanhã seria um longo dia.
No dia seguinte, acordaram cedo para pegar a estrada. Tomaram café da manhã no salão Jonathan Harker, bem menos ameaçador à luz do dia, os manequins medievais apenas ridículos. Natália estava emburrada e assim continuou mesmo depois de Eduardo lhe mostrar, na tela do celular, a previsão de nevasca em Sighisoara. “Diz aqui até vinte centímetros”, falou ele, tentando animar a filha e se distrair do rosto ciclópico da noite anterior. “É bastante coisa!”; em resposta, apenas um suspiro e a cabeça curvada na direção do braço em L. Mas apostava que aquele humor intragável não resistiria à neve caindo.
Voltaram a rasgar vilarejos vazios, agora sob a luz oblíqua da manhã. Bistrita ficara para trás. Natália parecia menos irritada e, a pedido do pai, escolhera a playlist. O painel do rádio informou que ouviam “We can’t be friends”, de Ariana Grande. Eduardo gostou da textura onírica da música, daquela voz aguda e sibilina, à qual a filha juntava a sua, rouca, até que afinada. Uma nova trégua, enfim. Torceu para que durasse até o passo Borgo, para onde se dirigiam agora. A última parada literária na Transilvânia, mas também a mais evocativa. Já lera que não se tratava de um desfiladeiro, como descrito por Stoker. Não importava. O que a realidade lhe negasse, sua imaginação corrigiria.
Uma hora e meia depois, chegaram ao ponto indicado no GPS do Arkana. De fato não era uma passagem estreita entre rochedos hostis, e sim um vale a atravessar os Cárpatos, cujas formas gigantescas recuavam à esquerda e à direita da estrada.
Das margens até as montanhas, no entanto, os bosques não estavam desfolhados e mortos, como tinham visto até ali. As árvores preservavam suas folhagens – que eram, coisa mais estranha, escuras e uniformes, de um negror denso. De onde estavam, pareciam borrões na paisagem.
Eduardo estacionou no acostamento e não desligou o carro. Os vidros tinham película contra o sol, então baixou a janela para enxergar melhor. Pela fresta o ar penetrou incisivo, congelante. O sol havia desaparecido atrás de nuvens baixas, muito alvas. Que contraste com os bosques negros e as montanhas difusas ao longe. Natália também olhava ao redor. Abraçou-se, mas não por causa do frio.
— Que árvores estranhas.
— Aqui é o passo Borgo – Eduardo fez menção de descer.
— Aonde você vai?
— Dar uma olhada. Não é como no livro, mas…
— Olhada em quê? Não tem nada aqui.
— Como não? – espichou o queixo na direção das árvores próximas.
— Bom, te espero aqui. Mas não demora, pai, por favor.
Trégua encerrada, pensou, enquanto descia. Deixou o carro ligado para manter o interior aquecido, o frio do lado de fora beirava o insuportável. Inspirou o ar e seu pulmão se encheu de agulhas minúsculas. Espiou a filha lá dentro antes de caminhar na direção do bosque; a cabeça inclinada de novo. Tinha permitido que ela ativasse o roaming internacional por meia hora, graças a Amália. “Não tente lutar contra”, disse ela na noite passada, enquanto a filha já ressonava na cama ao seu lado no Coroana de Aur. “Proibir só vai piorar, é melhor negociar”.
Sim, toda a convivência deles acontencia na base da barganha, afinal. A vinda à Transilvânia, uma troca pela ida à Inglaterra. A própria viagem à Europa em troca de uma conexão mais forte entre ambos. Mas sua imaginação e a racionalidade da filha não eram intercambiáveis, estava claro. Não conseguia erguê-la do chão, assim como ela não era capaz de mantê-lo na terra.
Chegou à linha das árvores. Era fascinante, mesmo de perto pareciam de uma densidade impenetrável. Os troncos escurecidos pela sombra de copas cinzentas. Encontrou um vão entre duas árvores e espiou por ali, tentando acostumar a vista à obscuridade. Arriscou um passo e no instante seguinte sentiu uma picada na testa, tênue e gelada. Depois outra, e outra. Olhou para seu casaco preto: os minúsculos pingos brancos se espalhavam por ali, rápidos e às dezenas.
Correu de volta para o carro:
— Tá nevando!
A filha ergueu a cabeça e seus olhos se acenderam de novo. Abriu a porta com um movimento ansioso e saiu, os braços abertos para abraçar aquele sonho enfim realizado. Deu duas voltas no próprio eixo, rindo.
— Será que vai dar pra fazer um boneco? Sempre quis fazer um boneco!
Eduardo olhou para o alto e depois para a estrada, já se revestindo de branco. Sim, daria. Nevava forte. Os Cárpatos tinham desaparecido atrás do dossel que se estendia pela paisagem. Em meio às picadinhas geladas, sentiu uma pontada de apreensão.
— Melhor a gente voltar pro carro.
— De jeito nenhum, pai – Natália via surgir, em suas mãos em cuia, uma pequena e alvíssima montanha. É. Prometera neve e a neve caía com fúria. A filha sacou o celular do bolso e começou a fazer fotos, selfies com a língua para fora, sedenta daquele maná gelado.
Eduardo voltou a olhar para o bosque. As copas das árvores se tingiram rapidamente de branco, mas o negror abaixo permanecia. Caminhou para lá, com cuidado para não escorregar. Um tranco nas costas o assustou.
Virou-se e viu Natália rindo, formando outra bola com as mãos e a atirando. Agachou-se para desviar, pegou um punhado de neve e lhe devolveu um tiro que passou longe.
— Que bela mira, hein?
Continuaram a arremessar bolas um no outro, de repente esquecidos de tudo. Eduardo sorria para fora e para dentro, fazia tempo que não divertia a filha. Esqueceram-se do céu também, sem perceber que a nevasca, em vez de diminuir, redobrou seu ímpeto.
***
Tentou se ajeitar no banco de trás, deitada, as costas e as pernas já doloridas. O pai estava na frente. Encarava quieto e imóvel o mundo branco na janela. Passada a brincadeira na neve, logo perceberam que a situação ficava complicada e a alegria se converteu em uma apreensão compartilhada.
Natália bufou. Estavam presos, o grafite da estrada desaparecera. O sinal de celular também. Procuraram informações pelo rádio, mas não entendiam nada de romeno.
Tinha dificuldade em não atribuir ao pai a culpa pela situação. Para que passar por um ermo daqueles? Um lugar no qual ele sabia que não tinha nada, além de umas árvores bizarras? Os dois estavam ali fazia mais de uma hora, ela já cansada da neve, louca para se enfiar em uma banheira pelando, para tomar um chocolate quente.
Olhou a tela do celular morto: duas e trinta e dois. Lá fora estava mais escuro, a paisagem branca agora acinzentada. Parecia mais tarde.
— Acho que diminuiu um pouco – a voz do pai soou animada. — Vou dar uma olhada na estrada.
Viu-o empurrar a porta contra o vento, batê-la e sumir em meio à opacidade lá fora. Olhou para os lados, procurando sinal de vida, de algum carro; nada. Devia estar tudo interditado. Como seria a limpeza daquelas estradas? Sabia que em Vail, no Colorado, era super boa e rápida, a Ka tinha contado. Podia nevar o que fosse e uns caminhões imensos e modernos, cheios de luzes, deixavam tudo limpinho em pouco tempo, disse a amiga, que ia para lá nas férias de final de ano para esquiar. Agora, ali, naquele fim de mundo? A julgar pelas cidadezinhas pelas quais passaram, todas esquecidas no tempo, a limpeza devia ser feita por algum calhambeque caindo aos pedaços.
Mas o pai tinha razão, a nevasca diminuía. Natália conseguiu distinguir as árvores escuras à direita, a silhueta das montanhas lá no fundo.
O clique a assutou. A cabeça de Eduardo apareceu na porta entreaberta.
— Tá parando de nevar, mas a estrada tá inviável.
— E agora?
— É torcer pra sair o sol e derreter. Não tem sinal de caminhão de limpeza – sua expressão, apesar de tudo, estava exaltada. Respirou fundo. — Vou explorar aquela floresta negra ali. Quer ir?
Agora foi ela que inspirou. Floresta negra? A única floresta negra que conhecia ficava na Alemanha, e pelas fotos era muito mais bonita que aquele arvoredo esquisito. Por outro lado, pensou na alternativa. Ficar no carro sozinha, sem celular, a mataria de tédio. Ali pelo menos poderia tirar umas fotos, nem que fossem de troncos pretos. Saiu e se juntou ao pai, que caminhava quase saltitando.
***
A poucos metros das árvores, Eduardo se deteve. À esquerda, em um emaranhado negro de ramos e folhas, algo cintilava, tênue. Forçou o olhar: um brilho azulado, mas tão fugidio e distante que desconfiou de si próprio. A filha também parou.
— O que é aquilo?
— O quê? – os olhos de Natália percorriam a extensão do bosque.
— Ali no meio – apontou naquela direção. O bruxuleio pulsou de novo. — Tá vendo? Aquele brilho.
A filha balançou a cabeça.
Como assim? Não era uma ilusão, não como o soldado cíclope podia ter sido. Espremeu de novo a vista naquela direção e não viu mais nada. O fogo frio desapareceu. Voltou a pensar em Drácula, nas chamas azuis na escuridão a marcarem o trajeto de Harker até o passo Borgo. Também pensou nos lobos, cujos uivos povoavam aquela noite agourenta do romance. Ali, porém, nada além do silêncio. Nenhum uivo, nenhum piado de coruja.
Estava parado diante do arvoredo, Natália pouco atrás. Deu um passo à frente, já com dificuldade de erguer a perna do espesso tapete branco, rumo à massa escura do bosque. A filha permaneceu onde estava.
— Você vai entrar aí?
— Por que não? Nunca entrei numa floresta negra antes.
— Não é floresta negra, é um monte de árvore queimada.
— Se estivessem queimadas, não teriam folhas negras também.
— E se você se perder?
Eduardo avançava rumo às sombras.
— Não tem como, daqui o brilho da neve é muito intenso.
Ouviu a filha grunhindo e depois os pés dela invadindo a relva de folhas secas.
Seus olhos foram se acostumando ao negror e por todos os lados distinguiram o emaranhado de troncos e ramos retorcidos. Cinza sobre grafite sobre outros tons mais escuros. Continuava vasculhando ao redor, procurando pelo fogo frio.
Natália logo o alcançou, ofegante. Pensou em perguntar se ela estava com medo, mas algo o reteve. Nada que tivesse visto ou ouvido, mas sim um aperto na garganta, de início leve e depois vigoroso, impedindo a articulação de qualquer palavra. O aperto desceu da garganta ao coração, esmagando-o devagar. Gemeu.
— O que foi, pai?
Não conseguiu responder. Agora o aperto baixava para as entranhas. À frente, o fundo mais escuro da floresta pareceu se acender, suavemente. A massa distante de árvores se inflamou de um rubor luminoso, como se tocada pela primeira hora – o primeiro minuto do amanhecer. Era um halo avermelhado a se desprender do solo negro, como se as entranhas da terra estivessem incendiadas – espetáculo impossível que arrebatou a visão e o fôlego de Eduardo.
Diante daquele fundo luminoso, viu formas se erguerem. Seriam troncos, ramos, tocos? Não, porque se moviam, como em um teatro de sombras. Não conseguiu desprender de lá os olhos e apertou o passo naquela direção.
Logo entendeu e engoliu o grito. Recortadas no clarão sanguíneo, as silhuetas negras se converteram em homens, homens atravessados por lanças verticais, presas à terra. Empalados, alguns pelo ânus; e ainda vivos, seus berros já distantes de qualquer traço humano. Tantas e tantas vezes se desenhara em sua mente aquela cena, que lera em livros de história. E agora estava à sua frente, a um só tempo terrível e maravilhosa. O fundo da floresta se convertia em um campo de batalha de séculos atrás, os otomanos subjugados pelo senhor da terra. Dezenas de derrotados agonizantes, seus gritos já recuando para gemidos e sucumbindo ao silêncio final.
Em meio à quietude, Eduardo demorou a perceber outra sombra surgindo do coração da terra. Só a viu quando ela veio em sua direção, grande e depois imensa, marchando à frente do horizonte inflamado. Quando a sombra se deteve à sua frente, a consciência o assaltou. A reverência o oprimiu e subjugou.
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— Pai? Pai, fala comigo!
Natália o puxava e sacudia, mas não adiantava. O pai encarava um ponto fixo à frente, o brilho da neve ainda iluminando o escuro o bastante para que ela distinguisse seu olhar espantado. Eduardo seguia andando devagar, passos curtos e cuidadosos, hipnotizado por algo que a filha não enxergava. A apreensão e a contrariedade se concentraram no medo, um medo em carne viva, pulsante. Ela se sentiu sozinha.
Agora a floresta estava mais escura, a luz alva filtrada pelas árvores já perdia força. Procurou afoita pelo celular e acendeu a lanterna: não havia nada ao redor além da massa negra de troncos e folhas. À frente, para onde o pai olhava e caminhava, a mesma paisagem estéril. Puxou-o mais uma vez, depois o empurrou, chutou e arranhou: nada. Com a luz do dispositivo, viu os olhos dele se abrirem ainda mais, junto com a boca, em um grito mudo — ao contrário dos seus próprios gritos, agora desvairados. Viu, ainda, o pai cair de joelhos e estender os braços adiante.
Não aguentava mais, não poderia continuar. Deteve-se e continuou gritando até sufocar. Virou-se para sair da floresta e o pai a agarrou pelo braço, sua mão uma tenaz irradiando dor imediata. O pai?
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Atanase se estapeou duas vezes, como sempre fazia quando o sono chegava. Nem o barulho do motor velho era capaz de mantê-lo alerta naquelas horas mortas da noite. O pior horário para se trabalhar, sem dúvida. Mas o frete havia sido contratado com urgência, e isso significava algumas centenas a mais de lei no pagamento final. Precisava de cada centavo já que logo teriam, ele e Catalina, mais uma boca para alimentar, a barriga dela prestes a estourar.
Pelo menos haviam liberado a estrada. A nevasca o detivera em Brosteni por horas, o péssimo serviço de limpeza quase comprometendo a entrega. Não poderia perder um segundo sequer, então resolveu dirigir a noite inteira.
Quando chegou à passagem Tihuta, acelerou. Não gostava daquela região. Conhecia as histórias de colegas caminhoneiros, contadas à luz vaga das lareiras de estalagens nos arredores. Gritos vindos da floresta, sombras mais escuras que a noite, chamas azuladas em meio ao arvoredo… o tipo de coisa de que era melhor ficar longe.
Depois descer por algum tempo, a estrada arremeteu para cima em uma subida leve. Com um solavanco, Atanase reduziu de terceira para segunda, o caminhão engasgando.
Retirava o pé da embreagem quando os fachos amarelados do farol mostraram algo na estrada, logo à frente.
Pisou no freio e o cinto de segurança o impediu de enfiar a cabeça no vidro, tamanha a violência do tranco. O coração escalou a garganta e continuou subindo, surrando suas têmporas, quando enfim viu e ouviu o que o detivera. À sua frente, no meio do caminho, um homem gritava. Tinha manchas escuras na boca, talvez sangue; manchas escorrendo na mandíbula e no pescoço.
Carregava um corpo inerte, que erguia em desespero na direção do caminhão. Um corpo magro, este sim tomado de sangue, teve certeza. Um cadáver, o homem carregava um cadáver.
No segundo seguinte, engatou a primeira e virou a direção. Acelerou enquanto se estapeava de novo, deixando aquele lugar sinistro para trás.
Que conto incrível, Oscar! Extremamente atmosférico e evocativo. Um romance situado no mesmo cenário seria fascinante, pois ficou aquele gostinho de quero mais rs
Nunca vou superar o baque desse final! AAAAAAAA poderia ser um livro inteiro, pois tem muita coisa sobre essa floresta que eu queria saber 😩 Genial como sempre, Osquinho