TerraTreva #10 Um encontro com Mariana Enriquez – y hasta luego, Alcalá
Nesta última edição escrita no exílio, te conto sobre como voltei à infância ao encontrar a autora argentina. Também falo sobre meus últimos - e intensos - dias na Espanha
Quando eu tinha 12 anos, era um moleque como tantos outros da minha idade. Meio avoado, mas ativo e doido por futebol – por ver e jogar. Já era são paulino fanático e na época, ali no começo de 1993, eu e alguns amigos também tricolores da escola onde estudava vivíamos um sonho: o time tinha sido campeão mundial pela primeira vez. Dois a um contra o todo poderoso Barcelona. Lembro-me como se fosse hoje do meu desespero quando o time espanhol fez o primeiro gol. Estava na sala com meu pai (também são paulino) e fugi pro meu quarto, chorando. Um tempo depois, ouvi o grito dele e desci correndo: tínhamos empatamos com Raí, de barriga. Mais tarde o mesmo Raí faria um golaço de falta e nós iríamos ao paraíso.
Mas meus amigos e eu ainda chegaríamos a um andar acima do paraíso. Tínhamos um trabalho de escola pra fazer, entrevistar algum adulto para conhecer mais de sua profissão. Veio a ideia: por que não entrevistar jogadores do SPFC? O tio de um amigo trabalhava no clube e poderia tentar arranjar pra nós. Conseguiu. Meses depois, entrevistamos, entre outros, Raí, Zetti, Ronaldão e (digo isso arrepiado) Telê Santana, o melhor técnico que o clube já teve.
Lembro que meus amigos foram com camisas do São Paulo, mas eu, sei lá pensando o quê, estava vestindo uma Hering magic (quem for mais “experiente” vai se lembrar disso). Resultado: os autógrafos foram rabiscados nela mesmo, e sumiram com as lavagens. Mas a memória vai comigo pro além. Foi um dos dias mais felizes da minha infância.
“Óhcar, ven aquí!”
Digo isso porque semana passada, 21 de março, senti algo muito parecido. Encontrei a Mariana Enriquez em Madri e experimentei um deslumbramento infantil, um maravilhamento de quem está diante de um herói ou heroína. Entendo você achar que exagero – o amigo e escritor Santiago Nazarian, na postagem exaltada que fiz no Instagram sobre vê-la, sugeriu que eu me recompusesse, pois ela é minha colega. Pois bem, veja, claro; é colega sim, mas é também o maior nome do horror atual. E sou fã mesmo. Acho-a um colosso na criação literária e um exemplo na lida com o público.
Ela estava em turnê pela Espanha pra lançar Un lugar soleado para gente sombría (Um lugar ensolarado para gente sombria), sua nova coletânea, que estou terminando de ler e adorando (escreverei a respeito pra Galileu). No anfiteatro lotado da Casa de América, no centro de Madri, Enriquez conversou com Christina Rosenvingen, cantora super famosa por aqui e no mundo hispânico (eu não a conhecia). Mais de 300 pessoas, e muita gente ficou de fora.
Gostei da conversa. Rosenvingen mediou com elegância, navegando entre a vida e a obra de Enriquez. Que comentou, por exemplo, que aos cinco anos foi enviada à terapia pelos pais pois era “sinistrinha” e não gostava de socializar com outras crianças. Falou da presença do imaginário e das crenças regionais em sua obra, de como a fascinam os santinhos e as entidades cultuadas em certos lugares da Argentina. Falou também, claro, de fantasmas como “guardiães” da memória, de espaços que preservam medos passados, de paisagens amaldiçoadas (há muitas no novo livro).
Em suma, nada de tão novo pra quem a acompanha, e, pensando agora, achei que a mediadora falou um tiquinho demais. Mas foi uma grande noite. Foi a oportunidade de ver a Enriquez triunfando com todos os holofotes sobre si. Irônica, com um timing certeiro nas respostas, fez rir sem ela própria rir. E com um carisma que só trevosos muito amigos dos próprios demônios conseguem demonstrar.
Ao final do papo, dei muita sorte: fui pra perto do palco, de onde se formaram duas filas para os autógrafos. Uma atrás do bololô onde eu estava e outra no lado oposto. A organização logo avisou que a fila certa seria a que se formou atrás de mim. Sorte mesmo, pois eram mais de 300 pessoas com o livro nas mãos e eu no começo da fila.
Quinze ou vinte minutos depois, estava diante dela, que tinha a expressão um pouco fechada, certamente cansada, já era o final da turnê. Mas aí ela me viu, sorriu e falou: “Óhcar, ven aquí!” Desmontei, fiquei vermelhaço, conforme comprova o registro a seguir.
Muito simpática, comentou “hace tiempo que estás en España, verdad?” e me agradeceu por ter ido. Dedicou o livro ao “colega e amigo” Óhcar, e eu me desfiz mais uma vez.
Vale dizer que foi a terceira vez em que nos encontramos pessoalmente. A primeira aconteceu em 2019 na Flip, quando a entrevistei. Pouco depois, em SP, encontrei-a em SP, numa conversa que teve com a venezuelana Karina Sainz-Borgo, mediada pelo Antônio Xerxenesky. Viriam mais três entrevistas online: uma live sobre o escritor inglês Robert Aickman, de quem Enriquez é fã, e duas conversas por e-mail sobre Nossa parte de noite e Os perigos de fumar na cama. Mas esta foi a primeira em que a encontrei pessoalmente na condição de uma rockstar. A fila quilomêtrica na Casa de América, o desespero de quem ficou de fora pra entrar (soube que rolou violência), e tudos mais.
Chaves de ouro
Depois, já no trem voltando a Alcalá, pensei no simbolismo daquele encontro. Em como ele representa um bonito desfecho para uma jornada que está prestes a se encerrar – chego no começo da semana que vem ao Brasil.
Com frequência tenho experimentado uma sensação de dever cumprido, pois acho que fiz tudo que me propus a fazer por aqui. Como também estou sentindo um friozinho na barriga de insegurança com a volta, te peço permissão pra elaborar uma breve recapitulação da jornada. Por aqui, trabalhei muito: concluí a tradução de um longo romance gótico, organizei um livro, co-organizei outro (cujo trabalho já estava avançado, é verdade), escrevi dois artigos, participei de uma banca de defesa de mestrado e outra de qualificação e segui com os trabalhos rotineiros, a coluna na Galileu, e por aí vai.
Também li e viajei muito (foram 17 “saídas” de Alcalá em pouco mais de cinco meses), tive aulas, apresentei palestras. Sobretudo saí da ilha pra ver a ilha, como já disse antes. Repensei minha vida toda. Ressignifiquei relações e me afastei de gente que eu sabia no fundo não ser muito legal, mas nas quais eu ainda assim insistia.
Então, esse encontro com a Enriquez foi, sem medo do clichê, uma chave de ouro. Ao longo da viagem, como você deve ter percebido aqui pela newsletter, vivi sentimentos com franqueza e peito aberto. E diante da autora argentina, experimentei uma alegria tão pura que me remeteu à infância. Em suma, acabou sendo também um encontro com o moleque que fui, um encontro graças ao qual volto revigorado ao Brasil.
Contribuíram pra esse desfecho outras despedidas. No último final de semana, jantei com a Teresa López-Pellisa, o David Roas, a Ana Casas e o David Jr. (filho do David e da Ana, de 12 anos). Foi maravilhoso tê-los como supervisores, e agora amigos. Volto com a certeza de as portas estarem abertas e sinto que ainda faremos coisas juntos.
Também me despeço de Alcalá, cidade em que adorei viver. Pacata durante as semanas e vibrante nos finais delas, me proporcionou o espaço ideal para esses meses de muito trabalho e reflexão. Levarei comigo os cantos das maritacas e o barulho bizarro que fazem as cegonhas, os badalos do sino que ouço do meu quarto, as caminhadas, alguns restaurantes (em especial o Metrópoli, onde quase sempre tomei café da manhã), as bibliotecas, a cantina da Amália na Faculdade de Letras (onde almocei quase todos os dias) e, claro, a Universidade de Alcalá de Henares. Adorei estudar na UAH.
MAS ainda preciso concluir o ensaio que estou escrevendo aqui, sobre horror escrito por mulheres. Acho que comentei contigo, terá como corpus “Venha ver o por do sol”, da Lygia, “Hablar con viejas”, da Cristina Fernandez Cubas, e Cupim, da Layla Martínez.
E se estou sendo repetitivo, me desculpe. Tem muita coisa na minha cabeça agora! Tanto que fui a Barcelona na terça passada e, ainda que tenha andado muito por lá, me senti mais exausto do que o normal. Cheguei a ficar resfriado. Minha analista sugeriu um “transbordamento”, e acho que ela tem razão, o corpo se manifesta ao caldo febril da cabeça. Mas já estou melhorando, até porque quero me sentir 150% pra reencontrar my girl Zaia, minha família, meus amigos, minha cachorrinha.
Em todo caso, não queria deixar de comentar sobre o Museu de l’Art Prohibit (Museu da Arte Proibida) que visitei em Barcelona, por recomendação do Rodrigo Casarin. Um acervo só de obras censuradas, escorraçadas pelo público, que escandalizaram, etc. O espaço foi inaugurado há poucos meses e é imperdível. Não só pela eloquência de vários trabalhos, como também pra entendermos alguns mecanismos da arte contemporânea, fundamentada no espetáculo.
Pero, como te disse, preciso concluir o ensaio que escrevo aqui - o prazo é totalmente da minha cabeça, não tive exigências por parte dos supervisores. Então vou encerrando esta edição, a última do exílio. Te agradeço demais por me acompanhar durante todos estes meses: adorei a interlocução que tivemos. A newsletter continua no Brasil, é evidente.
Antes do ponto final, compartilho dois trabalhos recentes:
Este artigo sobre o gótico que saiu na revista USP em um dossiê sobre “Literatura de entretenimento”
E é isso! Um beijo ou um abraço, o que te convier,
Oscar
Adorei a edição. Obrigado por compartilhar do encontro com a Mariana Enríquez.
Os planetas estavam alinhados a seu favor no dia da Enriquez! Muito feliz por esse encontro ter sido PERFEITO 😍