TerraTreva #12 A volta dos que não fui
Faz quase um mês que retornei do exílio. Tomando distância das emoções que me avassalaram, consigo organizá-las com mais clareza e compartilhá-las com você.
Quando tinha 26 anos e trabalhava em agência de publicidade, tomei uma decisão radical: largar o emprego e passar meses fora, num período sabático.
Andava de saco cheio do trampo, não me via no lugar do meu chefe (um cara muito bacana, por sinal, como quase todo mundo da agência) e, no geral, me sentia perdido. Meti na cabeça que uns meses longe de tudo bastariam pra eu reencontrar a luz e o caminho. Consegui negociar minha demissão (bons tempos da antiga CLT): eu devolveria a multa e, com o que receberia, mais o FGTS, poderia pagar a aventura.
Meu plano era Paris. Não conhecia a cidade e queria aprender de vez o francês. Eu tinha tido aulas no ensino médio e depois numa escola de idiomas meio sem vergonha. Ainda derrapava no intermediário e minha ambição era alta: poder ler no original alguns de meus heróis literários, como Sade, Maupassant, Huysmans e Céline.
Também queria escrever. Se tudo desse certo, viver e depois escrever. Quem sabe não voltaria com um romance de viagem? Uma incursão na autoficção? Então fui à Central de Intercâmbio (CI, nem sei se ainda existe), adquiri um pacote de três meses de aulas num lugar chamado France Langue e, em setembro de 2007, embarquei pra capital francesa. Sozinho, não conhecia absolutamente ninguém lá.
Recibo no papel imundo e quase-deportação
Corta para sete meses mais tarde. No final de março de 2008, desembarquei em SP, mais magro e mais pálido (palavras da minha irmã ao me ver no aeroporto). Também estava todo bagunçado das ideias, mas isso só fui descobrir um pouco depois.
Em resumo, a jornada parisiense tinha sido grandiosa e terrível ao mesmo tempo. Bipolar talvez seja um termo apropriado, porque alcancei ápices e me atirei em vales profundos – mais em vales profundos, é verdade. Os quais boto na conta da minha desorganização. Em boa parte do tempo morei em um cubículo alugado de um iraniano suspeitíssimo, que rabiscou o recibo do primeiro aluguel e do caução num pedaço de papel imundo. Uma chambre de bonne (quarto de empregada – lá a coisa é tão crítica nesse sentido como cá) de 6 m2, incluindo chuveiro, armários, cama com edredom encardido e uma mesinha pras refeições.
Como eu não tinha visto de permanência, precisava sair da França (e dos países que formam o tratado de Schengen) a cada três meses para voltar e renovar o período a que tinha direito de ficar lá. Uma vez, voltando de Londres, tomei um esculacho de um policial alfandegário. Quase fui deportado.
Quanto aos planos, pelo menos aprendi o idioma local – mérito mais da convivência com o Greg (um francês de Lille com quem dividi um apartamento) do que da tal France Langue. E viver, até que vivi. Mas não escrevi quase nada além de entradas no meu diário – em resumo, nada que prestasse.
Assim sendo, quando voltei ao Brasil, estava aliviado. Reencontraria minha família, meus amigos e minha cama, pacificaria meus ânimos atormentados. Achava que de alguma forma os meses fora colocariam as coisas no lugar. Me sentia diferente, mais cascudo. Acreditava que agora sim poderia pegar as rédeas da vida e conduzi-la para onde quisesse.
Estar sozinho numa cidade lotada
Que tolo eu fui; só levei coice. Um belo dum solavanco já foi a confusão mental de voltar pro mesmíssimo lugar estando diferente. Ainda mais quando esse mesmíssimo lugar é São Paulo, uma cidade que adora mastigar a gente. E vejam, estou falando de 16 anos atrás, hein? Não era taaaaanto esse canteiro de obras colossal, ensandecido e violento que se tornou hoje.
Mas outras porradas vieram. Eu tinha vivido o que vivi lá sozinho; não conseguiria compartilhar com as pessoas amadas daqui, não na totalidade. Isso intensifica a solidão, mesmo quando voltamos a estar nas companhias que tanto nos fizeram falta.
Meus planos literários, se é que existiam, tinham naufragado. Precisei voltar a trabalhar em agência, ganhando menos do que antes de sair. A sensação de desorientação só se intensificou, eu não conseguia me ancorar em lugar nenhum. Nem na casa onde cresci, morando com meu pai (minha irmã morava fora de SP por causa da faculdade). Me desentendia com ele sem parar.
Agora, quando nem nossa casa é mais nossa casa, tem algo bem errado. Fui procurar uma psiquiatra. Pela primeira vez na vida tomei antidepressivos, cloridrato de sertralina. Por três meses, depois misturei com uma certa erva e me dei mal. É fácil adivinhar o que escolhi parar, correto?
Bom, escrevi este enorme preâmbulo para confessar que, depois de voltar de Alcalá, tenho sentido mais ou menos o mesmo. As viagens em si não se comparam: em 2007 eu era um perfeito kamikaze, um chófen porra-louca, bastante mimado e com pouquíssima ideia de como o mundo era de fato. A viagem de agora, eu a fiz na qualidade de um homem de meia idade que, na medida do possível, organizou seu pós-doutorado para evitar os riscos da primeira.
Até consegui, tudo saiu como o planejado. Mas pros baques do retorno acho que não existe preparação. A começar pela voracidade do que sentimos: dias e dias antes de voltar eu estava roído pela ansiedade, imaginando sem parar o momento de reencontrar minha irmã Isabel, minha “boadrasta” Deli e my girl Zaia.
Não dormi absolutamente nada durante o voo de volta e chorei não poucas vezes antecipando esse momento. E que momento extraordinário: tão intenso foi o que senti que desembarquei aéreo, meio tonto, sem atinar com o que estava rolando. Deve ser um mecanismo de segurança pra quando transbordamos. Mas ali estava eu, abraçando-as e amassando minha cachorrinha (que me estranhou bastante e só me concedeu o luxo de seu amor um bom tempo depois, quando teve certeza de que eu não iria mais embora).
A estranha dimensão nem-nem
Os dias seguintes à minha chegada foram estranhos. O êxtase de voltar foi eclipsado pela mesma sensação de desencaixe de tantos anos atrás. É a dimensão do nem-nem: eu não estava nem Alcalá, nem cá (desculpe, não resisti); eu não era nem a pessoa que passou aqueles meses lá, nem a outra que seria aqui. Voltei também prum apartamento vazio, pois a Taina tinha saído dele um dia antes do meu retorno – o que amplificou a minha desorientação.
Mas o que pegou mesmo, agora percebo melhor, foi um combo de crises, a profissional sendo a mãe de todas. A nossa mente é de fato um labirinto, uma dama gelada, insondável e impetuosa. Bem quando eu estaria no momento culminante da minha carreira, depois de um período de estudos fora e um certificado de grande valor, me senti derrubado; incapaz.
Esse desconcerto se espalhou por todos os lados da minha vida, me oprimindo. Me deixando pra baixo, essa é a verdade. Eu enfim começaria a relação [presencial] com a Zaia, mas tive dificuldades de me ver como aquele cara que com ela compartilhou tantas expectativas durante os meses passados. Meus amigos queriam me encontrar, é claro, mas eu não compreendia o motivo, me sentia aquém da vontade deles. E me sentia aquém da capacidade de gostar da cidade onde nasci e sempre vivi. Sim, São Paulo está mais faminta e mastigante, mas ainda é a minha São Paulo, apesar de tudo. Ela está em algum lugar e aos poucos a vou encontrando.
Não existe um motivo factual pra tudo isso. Em essência, a despeito do que vivi e senti nesses meses fora, continuo sendo quase o mesmo. Minhas paixões, minhas habilidades, minhas qualidades, meus defeitos, meu trabalho e meus valores continuam sendo quase os mesmos. Mas acontece, eu já devia saber. Acontece porque volto um pouco diferente pro mesmo lugar, e porque isso me joga numa condição intervalar, na tal dimensão do nem-nem. Sinto que ainda estou em trânsito, rumo à conclusão da jornada, de fato. Uma hora eu transponho esses quases, supero o nem-nem e chego de vez, tenho certeza.
O que tem me impedido de cair de vez
Até lá, queria agradecer a paciência e o carinho com que as pessoas mais próximas têm recebido minhas arengas. Elas são a definição literal de rede de apoio – rede, mesmo, como aquelas de circo, que impedem que malabaristas se arrebentem no chão enquanto se arriscam nas cordas bambas, metafóricas ou não.
Também não caí de vez porque desde o momento em que cheguei me esforço pra estabelecer uma normalidade por meio de atividades. Isso implica treinar quase todos os dias, entregar trabalhos dentro dos prazos, manter uma boa rotina de sono e alimentação. Além disso, voltei a ser voluntário no Instituto C, uma ONG que admiro demais – trabalhei voluntariamente lá por cinco anos, de 2014 a 2019, e vinha sentindo muita falta da experiência. Todas as manhãs de quarta estou na sede da Vila Buarque pra cuidar de crianças na brinquedoteca, e pra auxiliar no que mais precisarem. Não tem sido fácil, às vezes falta energia. Mas já sinto a represa enchendo, pelo menos.
Bom, vou ficando por aqui nesta que é a primeira edição de fato que escrevo no Brasil. Na próxima, já em maio, espero ter esgotado o assunto “exílio” pra voltar a falar mais do que de fato interessa – horror, trabalhos vindouros (incluindo uma oficina de escrita, um lançamento de livro e uma conversa com a Bora Chung, da sensação Coelho Maldito) e mucho más.
Obrigado pela leitura e pela paciência.
Um abraço,
Oscar
Querido combo sempre continuo me emocionando com sua escrita e essa em Particular me fez chorar de carinho e Amor
Bus no ccoração