TerraTreva #14 Por que continuar criando horror?
Uma edição para tentar entender qual é o espaço do arrepio imaginário num mundo arrepiante pra valer.
Tenho feito com frequência a pergunta acima. Acho que comentei por aqui que ando em crise desde que voltei de Alcalá, e a minha percepção das coisas está um tanto abalada. Sobretudo de mim mesmo como profissional.
É contraditório, porque justo quando volto de um pós-doutorado — ou seja, um momento importante na carreira acadêmica, culminante, até —, afundo em dúvidas sobre meu trabalho, minhas capacidades, meus próximos passos. Questiono tudo, das minhas motivações à qualidade do meu trampo. O que já não é tão estranho, porque sempre tive uma relação ambivalente com as minhas criações.
Enquanto estou escrevendo, e depois, durante as revisões e as idas e vindas do texto, costumo me empolgar, acreditar no que faço. E quando recebo o livro impresso, morro de orgulho. Folheio-o, cheiro-o, passo olhos marejados por seu lindo corpo recém-nascido.
Só que a seguir começo a descer a ladeira. Já não releio o livro porque, se o fizer, vou querer mexer em tudo. Menos nas ideias centrais: nelas sigo acreditando porque sei que vêm das minhas profundezas. Mas a forma que dou a elas é mais circunstancial, é permeada pelas forças que me constituem num determinado momento. E o momento atual é de crise. Pesada. Pra você ter uma ideia, escrevi dois contos recentemente: não ouso chegar perto de nenhum deles. Muito menos dos meus livros de ficção. Mesmo dos de não ficção mantenho uma distância segura.
Mas longe de mim fazer terapia contigo. Conto da minha crise porque, bem no olho dela, tenho me perguntado sobre a relevância e o lugar do meu trabalho, o que me leva a perguntar sobre a relevância e o lugar da ficção de horror no mundo atual. Não são questionamentos inéditos, de jeito nenhum. A novidade é que as respostas já não vêm tão facilmente quanto antes.
Amor não é suficiente
Minto. Uma resposta, a primeira, é imediata: amor. Amo as histórias assustadoras como sempre amei desde criança. Isso não mudou.
O frio na barriga que antecede o arrepio, o entrelaçamento da minha imaginação à de quem criou o livro ou o filme, a sensação de pertencimento quando nos deparamos com um universo ficcional que corresponde às nossas próprias visões sinistras do mundo, a coragem de nós exigida, a catarse: tudo isso explica o meu amor pelo horror.
Acontece que amor, neste período de crise intelectual e profissional, não basta. Preciso racionalizar, esclarecer, me convencer sobre o significado disso tudo. Parte deste processo implica localizar o horror ficcional num mundo a cada dia mais assustador. Sinto que devo reencontrar o espaço dos nossos amados artefatos do arrepio em um lugar por si só bem arrepiante, e não do jeito que gostamos. Preciso reencontrar as palavras certas para responder à clássica frase:
“De horrível, basta a realidade”.
Aí é que tá: será que basta, mesmo? Estou convencido de que não. Porque nesse caso estamos diante de uma concepção de horror bem diferente daquela que temos na mente e no coração. Pra pessoa que diz isso, há uma adição: horror + horror. Aí faz sentido, ninguém aguenta acumular horrores do tipo que ameaçam pra valer a vida humana.
Medo seguro
Mas pra nós (uso a primeira pessoa do plural porque assumo que você, caro leitor e cara leitora, seja dos meus), o que acontece é uma substituição. Trocamos a vivência do horror pela imaginação do horror. Isso remonta ao medo seguro, conceito central nos estudos da construção ficcional do arrepio: significa que podemos experimentar sensações ditas negativas, como medo, angústia, aflição, repulsa, etc, em um ambiente seguro.
É uma situação bem diferente daquelas a que a realidade nos submete. E tem o caráter terapêutico, também, porque imaginar o pior nos prepara pra viver o pior. Que o diga este estudo sobre como fãs de horror lidaram “melhor” com a pandemia.
Essa qualidade terapêutica do horror tem outra dimensão. Pensando na criação literária, sempre que damos forma aos nossos medos mais intensos e profundos, eles se tornam mais reconhecíveis, e por isso menos ameaçadores. Ao verbalizar as feras, ao cercá-las com palavras, nós as amansamos. Melhor: nós as manipulamos para que ataquem quem quisermos. Assim, viramos voyeurs da concretização de nossos próprios temores. “Ufa, não sou eu devorado vivo por zumbis”; “que bom que não sou eu enlouquecendo com os fantasmas daquela casa”.
Fora do âmbito psicanalítico do horror, tem o lado político. Sempre teve, mesmo quando autores e autoras não pretendiam dar um enfoque ideológico específico às suas ideias. Drácula, do Bram Stoker, põe em rota de colisão duas visões de mundo diferentes, o científico/esclarecido (representado pela Inglaterra) e o místico/primitivo (delineado pela Transilvânia) – narrado da perspectiva dos supostamente esclarecidos, claro.
Hoje, essa corrente política dentro do horror flui caudalosa, como mostram as várias autoras latino-americanas do gênero. Falei sobre o assunto numa perspectiva feminista nesta edição.
Um bebê largado no centro da cidade
Bom, você deve perceber que estou tentando responder à pergunta do título, mas ainda não sinto que tenha conseguido. Avaliando o contexto atual, acho que uma chave pode ser o medo do mundo: um sentimento que considero absolutamente poderoso e que tem me perturbado mais nesses tempos de crise.
Pra explicar, te peço licença pra retornar ao movediço terreno da psicanálise. Uns quinze anos atrás, pouco depois de voltar de outra temporada fora, eu andava bem perturbado. Arrumei um emprego numa agência de marketing direto, mas me sentia perdido, confuso. Numa tarde qualquer, lembro de surtar: pedi ao meu chefe pra sair mais cedo e fui correndo até a psiquiatra que me acompanhava, chorando, sentindo muita angústia mesmo. Chegando lá, expliquei a situação e ela me devolveu uma analogia que até hoje me marca:
“Você parece um bebê que foi abandonado no centro de São Paulo e está cercado de adultos desconhecidos.”
Ela era truculenta e direta (inspirou a doutora Norma de Bile negra), mas foi certeira. Era exatamente como me sentia. Pequeno, desamparado e cercado de pessoas estranhas, indiferentes ao meu desespero. Aterrador de verdade, e não deixa de ser como me sinto hoje, ainda que com menos intensidade.
Pavor antigo
Continuo buscando na terapia os motivos pra isso, mas eles não vêm ao caso: concentremo-nos na sensação. A massa anônima do mundo se aproximando, estrondosa e devoradora, enquanto vamos recuando, cada vez menores e mais frágeis. As pessoas que conhecemos participam dessa massa, mas estão diferentes, “unheimliches”, sequer notam nossa existência. Não temos o que fazer nem para onde ir. É um medo – ou melhor, um pavor – antiquíssimo. Não consigo exprimir a totalidade de sua força, porque me rouba as palavras e o fôlego.
Mas preciso tentar. Volto então ao ringue da ficção, pra me exercitar e fortalecer. Escrevi e escrevo contra este medo, e paradoxalmente a favor dele. Enfrentando-o, coloco-o bem debaixo dos holofotes, no centro das atenções. Acho que esse paradoxo é o âmago da questão, desde os tempos da concepção do sublime: somos magnetizados pelo que nos repele.
O medo do mundo está em muita coisa que escrevi. Em Bile negra, é a multidão psicologicamente desequilibrada que cerca um protagonista cada vez mais isolado. No conto O breu povoado, é a horda de espectros que vai encurralando o protagonista em viagem ao Haiti. Na novela Claroscuro, é o mundo que permanece de pé enquanto Dário, o protagonista, cai sem cessar. E no meu novo romance, sobre o qual ainda não posso falar muito, se manifesta pelo medo de estar sozinho em um mundo lotado; o medo de imaginar mortas (ou indiferentes a nós) todas as pessoas que amamos. Só sobramos nós e estamos cercados por adultos desconhecidos.
É mesmo um paradoxo: este medo, mais do que qualquer outro, me mortifica porque me paralisa, e depois me vitaliza porque me leva a escrever. Preciso verbalizá-lo e senti-lo até esgotá-lo, ainda que nunca se esvazie por completo, ainda que às vezes volte com vigor redobrado, como agora.
Mortificar e vitalizar, morrer e reviver: me parece que horror capta, melhor do que qualquer outra expressão artística, esses processos tão violentos, tão sangrentos, e por isso assustadores da nossa existência. Narrar o horror, portanto, é narrar a própria vida, mas com a mediação daquilo que, penso eu, temos de melhor: a imaginação. Esta seria uma resposta possível, acho.
Oficina de arrepios
Uma parte de toda reflexão estará na oficina online de escrita de horror que darei no Lugar de Ler. Se você quer aprender mais sobre a literatura de horror e criar seu próprio conto assustador, te convido a conhecer o curso. Serão cinco encontros semanais, sempre às segundas, começando na próxima segunda (27/05).
O percurso das aulas: vamos visitar a historiografia da literatura de horror, compreendendo suas origens e relações com o gótico e o fantástico; depois, desmontaremos algumas obras do gênero consideradas bem sucedidas de modo a compreendermos sua composição, seus mecanismos internos. Por fim, partiremos para a montagem de nossos próprios artefatos do arrepio por meio de exercícios práticos, com a elaboração final de uma narrativa breve.
E aí buscaremos, juntos, outras respostas pra delicada pergunta desta edição.
Muito obrigado por lê-la e até a próxima,
Oscar
Fiquei apavorada só de imaginar o que você sente.😲😘
Gostei muito do texto, me identifiquei com suas crises.
No entanto, tenho algumas crises que ainda não sei identificar.
Até pensei em ir atrás de um terapeuta, mas como a grana é curta, escrevo elas num diário.
O que alivia um pouco. E nunca pensei em transportá-las para um conto.
Força aí com suas crises.