TerraTreva #16 Golpes da vida? Esquiva, jab e direto
Uma edição sobre como tenho evitado ir a nocaute. Prometo me esquivar de frases motivacionais (mas as metáforas pugilísticas são inescapáveis)
Quase dois meses atrás comecei a treinar boxe. Andava saturado dos exercícios de sempre, basicamente musculação e condicionamento físico na academia, naquele ambiente macambúzio. Queria mudar as práticas e arrisquei o boxe porque é um esporte bem completo, pro qual a gente precisa se preparar muito. Eu tinha uma ideia disso: como cria dos anos 1980, me marcaram as cenas do Rocky Balboa se matando de correr, pular corda e subir escadarias, depois erguendo o braço da superação para uma Filadélfia gelada.
Fui atrás das aulas. Conversei com um professor da academia que frequento e ele me indicou o Antônio Cesar, com quem venho treinando desde então. Com um detalhe que, pra mim, deixa tudo mais rocky balboer: os treinos acontecem ao ar livre, na quadra de uma praça perto da minha casa.
Logo na primeira vez, uma aula teste, vi que a coisa era puxada. Depois de um tempo correndo, fazendo flexões, abdominais, agachamentos e polichinelos, pensei: já deve estar acabando. Espiei o celular e só tinham se passado vinte minutos, e eu já suava em bicas. Ao final da aula, estava exausto, mas saí de lá ansioso pela próxima.
Passado um tempo, como acontece com quase tudo o que nos move pelos labirintos da vida, descobri outros motivos (menos evidentes) pelos quais comecei a treinar boxe. Por exemplo, foi uma conexão que tive com meu pai, que gostava muito do esporte.
Ele nunca chegou a lutar, que me lembre, mas adorava acompanhar pela TV. Ali pelo final dos anos 1980 e durante a década de 1990, assistia a quase todas as lutas principais, e eu, quando aguentava ficar acordado (as disputas quase sempre eram nos EUA e o fuso fazia com que fossem tarde), o acompanhava. Juntos, vimos gigantes como Sugar Ray Leonard, Evander Holyfield, Lennox Lewis, George Foreman, Óscar de la Hoya e, claro, Mike Tyson. Também vibramos com o nosso Maguila.
Tá certo que, na época, eu gostava mais de passar um tempo com meu pai do que das lutas em si. Mas me lembro de ficar impressionado com aquele balé sangrento, com a rapidez dos golpes que mal víamos, com os olhos inchados e fixos no oponente, com os nocautes. Eram noites que eu guardava na memória.
Agora, havia um motivo ainda mais subterrâneo pra eu começar a treinar boxe. Um motivo que, graças à psicanálise, desenterrei:
“Destruição”
Numa das sessões, minha terapeuta disse fazer sentido gastar energia dando uns socos, porque eu estava precisando destruir as coisas pra construir outras no lugar. Foi uma iluminação.
Se você leu a minha newsletter nos últimos meses, deve ter percebido que, depois de voltar da Espanha, entrei numa crise profunda. Teve origem pessoal, a última fase do luto pelo fim de meu relacionamento anterior – e, por última fase, me refiro à melancolia. Mas a crise também se tornou profissional, foi inevitável. A rejeição cobre nossa percepção da vida – e de nós mesmos – com filtros que distorcem tudo. Deixamos de confiar em nossos talentos e atributos. Ficamos esvaziados, murchos. Não à toa a prática de esportes é tão benéfica nesses momentos: se não conseguimos nos preencher com a energia vital de antes, que nos inflemos de músculos.
Além disso, a minha rotina estava cheia de armadilhas. O meu apartamento, repleto de quinas nostálgicas. A todo momento eu tropeçava numa memória ínfima mas dolorosa, que me derrubava. Então destruir fazia mesmo todo o sentido. Eu já vinha realizando isso de maneira sutil, mudando pequenas coisas na casa, trocando objetos cheios de significados, substituindo hábitos dos últimos anos.
O boxe, portanto, assumiu um caráter simbólico. Uma vez por semana, saio distribuindo sequências de jabs, cruzados, diretos e úques (hooks, ganchos, na nossa linda apropriação linguística) no mundo ao redor para, uma hora depois, reencontrar esse mundo (e a mim) reconfigurado. Troco o filtro da distorção pelo véu do suor e volto pra casa redimido. Me sinto renovado e entusiasmado.
Antônio, o professor, já me disse que “boxe vicia”, e é fácil ver os motivos. É fácil ver que os limites perto dos quais chegamos a cada aula vão ficando pouco a pouco mais distantes. Trinta segundos a mais pulando corda, dez segundos a mais de agachamento, cinco flexões a mais no fim da aula, uma sequência de golpes mais complexa, um round mais extenso. A todo momento, vamos nos destruindo e ressurgindo em versões mais capazes, condicionadas, confiantes. Este contínuo processo de morte e renascimento é mesmo viciante, ainda mais quando espelha o nosso próprio momento de vida.
A abelha e a borboleta
Tudo isso, note, em pouco tempo. Dois meses, na verdade. Pra você ter uma ideia, ainda estou bem longe de subir num ringue pra trocar socos à vera com alguém, o chamado “livre”. Nos rounds das aulas, o professor usa manoplas e programa as sequências. Ainda fico muito tenso, todo duro, golpeando feito um Lango Lango:
Flutuo como uma abelha e pico como uma borboleta, diriam os detratores, e é isso mesmo — o oposto do “float like a butterfly, sting like a bee” que nos ensinou o maior de todos, Muhammad Ali. Ainda assim, termino cada nova aula cheio de orgulho por ter chegado até ali sem pedir arrego. Resumindo, nesse período em que a vida distribuiu uma boa sequência de golpes, o boxe tem me salvado de ir a nocaute. Tem me ajudado a me sentir acima de mim mesmo, e eu não tinha ideia de como precisava disso.
Uma última palavra sobre boxe e meu pai. Lembro que naquela época passei a cultivar uma vontade: juntar dinheiro o suficiente pra levá-lo a Las Vegas, pra assistir a uma luta. O plano se dissipou e ele morreu em 2017. Mas acho que agora eu teria boas ideias pra trocar com o velho sobre essa paixão que também se fortalece em mim.
Lançamento no RJ, nova tradução e oficina em julho
Agora, um convite em cima da hora: HOJE, 21 de junho, estou no Rio pro lançamento da edição ampliada de As artes do mal - Textos seminais, que organizei ao lado do Júlio França e do Cláudio Zanini. O livro é uma antologia de 35 ensaios fundamentais para quem estuda o medo e o mal na literatura. Nele estão reunidas traduções de textos em alemão, espanhol, francês e inglês, de autores de nacionalidades distintas, cobrindo um intervalo de tempo que vai de 1588 a 1935. São reflexões feitas por filósofos, críticos e escritores a respeito de expressões como gótico, horror, grotesco e narrativas de crime, entre outras. Alguns nomes que assinam os textos: Montaigne, Mary Shelley, Poe, Henry James, Woolf… Imperdível pra quem pesquisa ou mesmo pra quem gosta de horror e gótico.
Será na Acaso Cultural, em Botafogo, a partir das 19h30. Se você estiver pela área, passe lá pra me dar um abraço!
E tem mais trabalhos meus chegando por aí. A tradução do romance Fome de viver, de Whitley Strieber, já está na boca do prelo, e outro livro que organizei, sobre o qual ainda não posso falar, está tomando forma. Acho que você vai curtir.
Encerro a edição com um último convite: em julho, ministrarei outra oficina online de escrita de horror, agora no Astrolábio. Terá um formato um pouco diferente daquela que estou conduzindo no Lugar de Ler, por ser mais curta. Aqui você encontra todas as informações a respeito.
E daqui a duas semanas eu volto. Mais longe das cordas, espero.
Um beijo ou um abraço, o que te convier,
Oscar
Bem-vindo à turma dos escritores boxeadores (acho que o Xerxenesky também tem trainado.
Tô num luto fodido, deu vontade de organizar a raiva dando uns socos. Ah, e fiquei curiosa com esse livro novo, vou adicionar na lista de desejos. Um abraço.