TerraTreva #17 Sobre capas traiçoeiras e pernas quebradas
Nesta edição, um desabafo contra livros cuja apresentação prega uma peça nas nossas expectativas.
Na última semana, calhou de estarem na minha cabeceira os seguintes livros: Quem vai te ouvir gritar (Suma), coletânea organizada por Jordan Peele e John Joseph Adams, e Enterre seus mortos (Cia. das Letras), de Ana Paula Maia. São diferentes entre si. O primeiro é uma coleção de contos de autoras e autores negros, a maioria estadunidense, publicada em 2023 nos EUA, e as histórias no geral se passam por lá. O segundo, um romance de 2018 de autoria de uma brasileira, situado num espaço rural indefinido, mas que reconhecemos como bem nosso.
Diferentes no geral, mas com um ponto em comum: são apresentados, em menor ou maior grau, como livros de horror. O subtítulo de Quem vai te ouvir gritar é “uma antologia de horror negro”, e a contracapa de Enterre seus mortos o apresenta como um “faroeste de horror”. Enquanto eu os lia, me veio à cabeça uma expressão que não faço ideia de onde aprendi, mas que definiu bem meu sentimento: o “leito de Procusto”.
Como não quero te perder pro Wikipedia, peço licença prum arroubo de palestrinha. Procusto foi um personagem da mitologia grega, um sujeito casca de ferida, um ladrão que morava ao pé de uma serra por onde passavam muitos peregrinos. Ardiloso, ele oferecia repouso aos passantes, que logo aceitavam. Quando se deitavam na cama por ele indicada, eram presos a ela. E além de roubá-los, Procusto e seu bando tinham um passatempo mórbido: caso os hóspedes fossem maiores do que a cama, cortavam-lhes as pernas. Se fossem menores, quebravam seus ossos e os esticavam.
Fica pior: Procusto tinha uma cama escondida, de tamanho diferente. Então, mudava os leitos de acordo com a altura do hóspede, cujo tamanho nunca se adequava a eles. Felizmente o herói Teseu chegou e acabou com a palhaçada. Prendeu Procusto de lado em sua própria cama e cortou sua cabeça e seus pés.
O leito de Procusto virou metáfora pra imposição de padrões e pra forçadas de barra, em português claro. No meio literário, em especial na pesquisa acadêmica, é uma expressão útil, porque é comum a gente se deparar com leituras ou análises que muitas vezes não cabem numa determinada moldura teórica, mas que acabam distorcidas, distendidas ou mesmo mutiladas pra nela serem enfiadas.
Puxando a sardinha pro meu campo de investigação, o gótico e em especial o horror, isso vale ainda mais. Você deve se lembrar de que uns anos atrás se falava, e ainda se fala, do boom do gótico latino-americano, com autoras como Mariana Enriquez, Samanta Schweblin, Giovana Rivero, Silvia Moreno-Garcia, etc. O “gótico”, nesse caso, seria um baita dum leito de Procusto, já que, com a exceção da obra da mexicana Moreno-Garcia e de alguns traços (importantes) em Enriquez, há poucos elementos nas outras que apontem pra essa poética – pois sigo o entendimento de estudiosos como Botting e França e vejo o gótico, hoje, como poética, como forma de narrar, mais do que como gênero. Assim, enfiar títulos como Distância de resgate, Terra fresca de sua tumba ou Coisas que perdemos no fogo no leito do gótico implicaria deformar uma boa parte deles. Tratei do assunto nesta coluna da Galileu.
Ok, ok, admito o purismo. Me deixo levar por cacoetes acadêmicos. Sei que as generalizações fazem bem pras vendas, porque permitem ao leitor ou à leitora situar uma obra específica em relação a outras que tenham feito sucesso. Essas forçadas de barra servem também pra evocar um determinado imaginário – e que bom que esse imaginário sinistro esteja em alta, já faz um certo tempo. O famoso “se você gosta de fulana, não pode perder sicrana!”
A questão é que, muitas vezes, sim, podemos perder sicrana. Eu, por exemplo, teria perdido numa boa a Agustina Bazterrica ou a Dolores Reyes, mas só percebi isso tarde demais, depois de ter lido as duas.
Noves fora a qualidade literária, que não vem ao caso aqui, o que pega pra mim é o enviesamento da leitura. Um livro é um produto no qual cada detalhezinho importa. Das cores à ilustração e às fontes da capa; da contracapa e do blurb ao texto de orelha; da foto do autor ou da autora (e sua minibio) a quem assinou o prefácio ou posfácio: tudo desperta a nossa expectativa antes mesmo de lermos uma palavra sequer do texto em si.
E quando tudo isso aponta pro horror mas o conteúdo caminha pra outro lado, é inevitável: a gente quebra as pernas (Procusto®).
Foi o meu caso com a antologia organizada pelo Jordan Peele e com o livro da Ana Paula Maia. Repito, aqui não pretendo avaliar criticamente os livros. O meu ponto são as expectativas frustradas — expectativas essas cultivadas não só pela embalagem das duas obras, mas pela recepção crítica que receberam ou vêm recebendo.
O trabalho de Maia costuma aparecer em matérias que tratam do horror brasileiro – eu mesmo já a mencionei em uma entrevista à Folha. (Em minha defesa, estava com outro livro dela na cabeça, o único que tinha lido até então, Assim na terra como embaixo da terra, no qual vejo mais traços do horror do que em Enterre seus mortos). A própria Cia das Letras, que a publica, dobra essa aposta: num folheto recente, coloca-a na seção Terror à brasileira, ao lado dos romances Neve negra, do Santiago Nazarian, e A febre, do Marcelo Ferroni, e da coletânea Gótico nordestino, do Cristhiano Aguiar (nos três, e mais no livro de Nazarian, percebo a vibração do horror).
Acontece que, em relação a Enterre seus mortos, não é bem assim. Vejo o livro como um “noir rural”, se é que isso seja possível. Todos os índices estão ali: o clima cinzento e chuvoso, o protagonista durão, misterioso e justiceiro que fuma e bebe café sem parar, a corrupção endêmica da sociedade, os assassinatos e os pequenos delitos... O romance até pode estar nas vizinhanças do horror, mas ocupa outro loteamento. Há algumas (poucas) cenas perturbadoras e certa atmosfera de ameaça, porém o desenvolvimento da história vai por outra direção.
O caso de Quem vai te ouvir gritar acho mais grave. A começar pelo fato de ser organizado pelo maior nome do horror negro atual, o Jordan Peele. Nos filmes que escreveu, dirigiu ou produziu, Peele inseriu, como ninguém, o debate racial na moldura narrativa do horror.
Corra!, por exemplo, já é um clássico, com o tour de force de Chris Washington (Daniel Kaluuya) na casa da família da namorada branca, os Armitage. No prefácio de Quem vai te ouvir gritar, o próprio Peele menciona o “lugar afundado” que Washington ocupa na história, ao ser hipnotizado pela mãe da namorada, como inspirado pelas masmorras oubliettes. Elas eram uma técnica de tortura medieval: masmorras subterrâneas em formato de garrafa nas quais prisioneiros eram jogados por dias, semanas, e eram tão estreitas que eles sequer podiam se deitar. Ficavam perto das cozinhas, para que sentissem o aroma da comida, sem poder degustá-la. Permaneciam lá, esquecidos do mundo, observando-o nas piores condições possíveis: um lugar que pessoas negras muitas vezes conhecem bem, explica Peele na apresentação. Um horror, de fato.
Mas à medida que lemos os contos, todos assinados por autores e autoras de destaque no cenário estadunidense, um fato salta aos olhos: Quem vai te ouvir gritar não é uma coletânea de horror. As 19 histórias que a compõem pertencem mais ao grande campo do fantástico, com suas vertentes como ficção científica, distopia e fantasia, com foco na dark fantasy.
Claro, há algumas bem dentro do horror, como “O viajante”, de Tananarive Due, ou “Esconde-esconde”, de P. Djèlí Clark. Mas o conjunto traz outros tons, outras sensações, algumas bem distantes do arrepio. Também não são muitos os contos elaborados a partir de injustiças ou desigualdades — o que desmontaria a ideia de “horror negro”, essencialmente vinculada a isso. São, no geral, autoras e autores talentosos exercitando suas imaginações em terrenos da literatura dita especulativa. E estaria tudo ótimo, não fossem as expectativas despertadas pela capa/embalagem.
Em tempo: vou escrever sobre Quem vai te ouvir gritar neste mês (julho), na minha coluna da Galileu. Assim que sair, postarei nas minhas redes. Aproveitando o ensejo, convido você a ler meu texto sobre o ótimo filme Entrevista com o Demônio (Late night with the Devil), de Colin e Cameron Cairns, que estreou ontem, dia 3 de julho.
Pra encerrar o assunto, só quero mesmo deixar registrada a minha frustração. E nem são livros ruins, longe disso; enxerguei qualidades em ambos e tratarei delas em outros espaços. Agora, imagine você um metaleiro como eu pegando um disco de uma banda nova, a capa preta com o logo da banda que mais parece um pernilongo depois da chinelada, colocando pra tocar e ouvindo algo tipo Imagine Dragons… De lascar, pois não? Eis minha dor.
Oficina (online) de escrita de horror agora em julho
Uma coisa eu garanto: na oficina que conduzirei a partir de 9 de julho no Astrolábio, tentarei te ensinar a escrever horror, horror pra valer. Serão quatro aulas ao longo do mês, sempre às terças. O formato será um pouco diferente da oficina que ministrei em maio e junho no Lugar de Ler: no Astrolábio, puxaremos mais pra literatura contemporânea do gênero, no geral. Mas se te interessa ir fundo naquilo que pode perturbar e arrepiar leitores e leitoras, acho que pode ser uma boa oportunidade. Aqui você encontra todas as informações.
É isso! Desabafo feito, saio mais leve após escrever essa edição. Você concorda? Compartilha dessa frustração? Discorda, acha que é só o jogo do marketing jogado? Me conte nos comentários, porque a conversa continua.
Um beijo ou um abraço, o que te convier,
Oscar
Ótimo texto! Eu passei pelo mesmo com "Enterre seus mortos" - apesar de ter gostado do livro em si, passei pela frustração de ter ido esperando algo bem diferente.
Acho que tem definições acadêmicas que acabam se popularizando com outro teor… é comum com termos da psicologia, por exemplo. As coisas vão mudando de forma e englobando de maneira mais generalizada- talvez tenha sido isso que rolou com o horror. Eu sinceramente náo conheço com profundidade como vc, mas confesso que os temas afins e as autoras que vc citou muito me interessam. Talvez a etiqueta pudesse ser mais específica para quem pesquisa sobre, mas nao sei se pro publico geral, como eu, faz uma graaande diferença. De qq forma, sempre bom aprender sobre.