TerraTreva #22 "O horror... não está no horror"
Nesta edição, reflito sobre horror para além do gênero, incluindo o que entendo por "horror residual". E uma palavrinha sobre a bienal do livro de São Paulo.
Duas semanas atrás, meu orientador de doutorado e amigo Ricardo Iannace me fez um convite apavorante: escrever sobre Kafka. Pior: escrever sobre Kafka em pouco tempo (menos de um mês). O Ricardo está organizando um livro pra marcar o centenário de morte do autor tcheco, que aconteceu em 3 de junho deste ano (2024), e me chamou para assinar um capítulo.
Achei o convite apavorante porque Kafka nunca foi meu objeto de pesquisa. Já o li, claro, mas nunca com o olhar mais analítico. Também o considero um dos autores mais difíceis de se abordar criticamente. Por dois motivos: em primeiro lugar, pelo próprio projeto literário dele, complexo e inapreensível, cheio de enigmas, metáforas deslocadas, narradores inscientes e procedimentos de alienação. Em segundo lugar: o que eu teria a dizer? A acrescentar a uma fortuna crítica que já reúne os maiores nomes dos estudos literários? Pergunto sem falsa modéstia. É vertiginoso cogitar refletir sobre uma obra que já foi lida por todo mundo.
Também sempre tive pra mim que não se fala de Kafka fortuitamente. Parafraseando Boromir de O senhor dos anéis, “One does not simply walk into Kafka”; é preciso uma longa aclimatação para adentrar os espaços gelados e opressores do autor. É preciso preparar os músculos pras porradas filosóficas desferidas pelos textos dele, e sintonizar a sensibilidade pra busca exaustiva de sentidos, sendo que jamais encontraremos algum, pelo menos algum sentido definitivo. Então, o que eu poderia fazer em menos de um mês? Como entrar em Mordor em tão pouco tempo?
Compartilhei minhas angústias com o Ricardo. Gentil e ponderado como sempre, ele recomendou que eu fizesse uma análise a partir da minha zona de conforto, os estudos do horror. Até me sugeriu a obra com que trabalhar, o brevíssimo conto “O abutre”. Um pouco menos apavorado, peguei minha edição de Kafka Essencial (Penguin - Cia. das Letras) e fui ler o texto.
Antes, porém, eu passei pela introdução do Modesto Carone, o grande estudioso e tradutor de Kafka pro português brasileiro. À medida que lia aquelas palavras precisas e lúcidas sobre uma obra que sempre considerei opaca (no melhor sentido, bem entendido), fui ficando mais tranquilo. Em sua apresentação, Carone se ampara em um dos principais estudos sobre o autor tcheco, Kafka: pró & contra, do Gunther Anders, que por sua vez tem frases lapidares como “o espantoso, em Kafka, é que o espantoso não espanta ninguém”.
Aqui, uma luz se acendeu. Logo pensei no filme Zona de interesse, do Jonathan Glazer, que me perturbou muito. Em especial na cena em que o protagonista Rudolf Höss (Christian Friedel), oficial nazista encarregado de administrar o campo de Auschwitz, está fumando em seu jardim. A casa de Höss e de sua família é vizinha ao campo. A cena se passa ao anoitecer: ele caminha tranquilamente pela relva até se deter, encarando o horizonte. De repente, começam a soar gritos desesperados, e a câmera vai de seu rosto para a paisagem, onde uma chaminé passa a vomitar uma fumaça negra. É o novo sistema de extermínio em massa que entra em funcionamento. Com a mesma calma de antes, ele só se vira, ficando de costas para a cena.
Então, me veio à mente outra frase memorável:
“O horror… não está no horror.”
Ela foi dita pelo cineasta brasileiro Júlio Bressane durante uma conversa com o também diretor Rogério Sganzerla. O diálogo está no documentário Horror Palace Hotel; ou O gênio Total, que foi realizado em 1978 pelo cineasta paulistano Jairo Ferreira e pelo próprio Sganzerla (agradeço demais ao amigo e crítico Carlos Primati por me apresentar a tudo isso).
A assertiva de Bressane é certeira ao delinear o horror como uma vertente flexível, fluída, capaz de se misturar facilmente a outras possibilidades narrativas, e mesmo de sobreviver fora desse contexto — no cinema, na literatura ou em qualquer outra linguagem. Depois de ter lido “O abutre”, pensei: podemos incluir, nessas cercanias do horror, alguns textos de Kafka, não?
Algo me dizia que sim. Pronto, eu tinha meu ponto de partida pro artigo que precisava escrever. O mote seria mais ou menos o seguinte: “Kafka nas vizinhanças do horror”, e comecei a argumentação com a descrição exata da cena de Zona de Interesse. O restante do artigo, se tudo der certo, você lerá numa edição que deve sair até o final do ano.
Fiz essa longa introdução porque quero tratar, aqui, dessas cercanias do horror. Das obras que, sem se inserirem no gênero, estão em diálogo e contato com ele. Seja pelo universo ficcional que apresentam, seja pela forma como são recebidas pelo grande público, com perturbações de diferentes naturezas. Encontrei um exemplo assim não só em “O abutre”, mas também em “Um fratricídio”, de Kafka. Tratei dos dois no capítulo que escrevi.
Este horror que transcende o gênero já foi pauta de uma coluna minha na Galileu escrita junto com o amigo Cristhiano Aguiar (aka Linguagem Guilhotina). E vira e mexe aparece algum livro ou filme que me leva a retomar o assunto. Foi o caso de Zona de Interesse neste ano, e também de A sociedade da neve, sobre o terrível acidente de avião nos Andes, nos anos 1970. Aliás, o filme é diridigo por um espanhol bem acostumado ao horror: J.A. Bayona, do conhecido O orfanato.
Agora, olhando em retrospecto, existem mesmo muitos exemplos desse horror que não está no horror. E podemos constatar isso em dois aspectos: primeiro, no grande campo do insólito, temos o arrepio quase como um modo, que se mistura a outros gêneros, como ficção científica e fantasia. Segundo, no horror que podemos chamar de residual, detectável em dramas e tragédias históricas (casos dos filmes de Glazer e Bayona), ou em obras de difícil categorização, como Kafka.
No primeiro caso, o do insólito, temos um clássico moderno: Alien, o oitavo passageiro, do Ridley Scott. Nele, a presença do horror é tão forte – e perturbadora – que muitas vezes esquecemos que se trata de um filme também de ficção científica. Lançado em 1979, não há dúvidas de que o horror foi o caminho escolhido pelo diretor para diferenciar a sua obra de outro filme que tinha estreado dois anos antes: Star Wars.
(A propósito, recomendo o filme mais recente da franquia, Alien Romulus, dirigido pelo uruguaio Fede Alvarez, da refilmagem de Evil dead e O homem nas trevas. Arrisco dizer que este abraça o horror tanto quanto o primeiro. Alvarez é um artesão do gênero e, a despeito de umas tolices no roteiro, arrebenta nas sequências assustadoras.)
Já Game of Thrones é um exemplo de como o horror se emaranha com a fantasia. A série apresenta uma narrativa épica permeada por um roteiro e uma produção (ao menos nas primeiras cinco temporadas) bastante sofisticados, e sem medo de tratar de temáticas adultas. Chama a atenção a marca do horror ao longo de toda a série – em especial nos momentos em que os elementos mais fantásticos surgem. A grande ameaça sobrenatural, os White Walkers, nada mais é do que uma releitura de um dos mais famosos monstros do horror, o zumbi.
Agora, na outra categoria, de horror residual, acontece de encontrarmos ecos do gênero onde menos esperávamos. Ou seja, em narrativas que sequer são marcadas pela presença do fantástico ou do insólito. Histórias em que não há confronto entre realidade e sobrenaturalidade, como as já mencionadas Zona de interesse ou Sociedade da neve. É quase como um contrabando do horror para dentro de obras criadas com outros propósitos.
Penso muito também na série Chernobyl, que fez sucesso alguns anos atrás. Embora seja uma obra de ficção, a narrativa tenta manter a fidelidade aos fatos históricos que levaram a um dos piores desastres nucleares da história. No fim das contas, o que é Chernobyl? É uma série sobre um Mal invisível e insensível à humanidade. É um Mal de poder inimaginável, diante do qual nós nos revelamos frágeis e impotentes. Lovecraft, anyone?
Outra das marcas do horror é a degradação do corpo humano diante de forças, visíveis ou invisíveis, que lhes são hostis. Algumas cenas de Chernobyl são dignas desse horror corporal, em especial o drama do bombeiro Vasily Ignatenko, cuja exposição a doses letais de radiação faz com que seu corpo literalmente se despedace. Quem não se lembra de filmes como A mosca, de David Cronenberg, ao perceber, entre o fascínio e a aversão, o que acontece com o corpo de muitos dos personagens de Chernobyl? Aliás, o próprio Cronenberg é mestre nesse manuseio do horror com outras expressões.
Voltando à literatura, claro, temos incontáveis exemplos além de Kafka. É muito interessante constatar o quanto ecos da estética do horror são ouvidos com força na autoria feminina contemporânea, em romances, novelas e contos que, embora não se enquadrem no horror, se deixam influenciar mesmo assim. Penso em Samanta Schweblin, que insere elementos do horror em contos que, à primeira vista, não são reconhecidos de imediato no gênero.
O mesmo pode ser dito de algumas narrativas da canadense Margaret Atwood, ou da estadunidense Lucia Berlin, cujos geniais contos do livro Manual da faxineira, em alguns momentos, também se alinham a essa tendência (você nunca verá uma cadeira de dentista da mesma maneira depois de ler esse livro).
No Brasil, Ana Paula Maia vem construindo uma carreira sólida abordando a vida bruta de personagens masculinos envolvidos em crimes e trabalhos desumanizantes. Volta e meia a gente se depara com cenários sombrios e marcados por um gótico contemporâneo, mas igualmente com cenas de horror corporal e violência bastante explícitas. Já problematizei esse enquadramento da autora nesta edição da newsletter.
Meu ponto é: o horror se torna um recurso que pode acrescentar um sabor peculiar às narrativas e obras artísticas contemporâneas. Mesmo que seus criadores não estejam compromissados com o gênero.
A partir desses exemplos, e deixando claro que muitos outros poderiam ser apontados, dá pra perceber o quanto crítica social, questionamento do patriarcado, recusa da normatização do corpo e do desejo, denúncia dos preconceitos de gênero, raça e sexualidade, ansiedades existenciais e políticas, entre outros temas caros à produção artística atual, podem ser desdobrados em uma chave mais obscura, que transcende o conhecido vocabulário do gênero. Afinal, basta a gente dar uma espiada em qualquer noticiário para perceber que o horror, de fato, não está no horror.
Uma bienal relativamente tranquila
Mudando de assunto, na bienal do livro deste ano, decidi não passar pelo Anhembi nos finais de semana. Como só tive um evento por lá (uma palestra sobre autoria de mulheres no horror na sexta, dia 13), pude me dar a esse luxo. Passei por lá nas duas sextas-feiras, e consegui escapar das hordas superlativas e do sufoco.
Mesmo assim, pude cumprir minha “agenda” no evento: conversar com editores, reencontrar amigos e leitores, assistir a uma apresentação ou outra, testemunhar tendências. Acho a bienal muito importante pra termos uma visão do todo, indo além dos nichos aos quais estamos acostumados. Nesse sentido, fez toda a diferença passar a tarde da última sexta, 13, com o jornalista Rodrigo Casarin (aka Página Cinco), que tá sempre com o polegar firme no pulso do mercado editorial.
Terminado o evento e noticiados os recordes históricos de público e faturamento, fico duplamente feliz: por ter escapado das intermináveis filas indianas, e por ver que, a despeito de tudo, o livro ainda exerce lá seus feitiços sobre a gente.
É isso, te agradeço pela leitura. No comecinho de outubro estou de volta!
Um abraço,
Oscar
Essa edição está recheada de referências para futuras leituras, deu até vertigem.