TerraTreva #23 Minhas recomendações pro mês mais legal do ano
Pra quem ama horror, outubro é um mês especial, com muita coisa boa pra ver e ler. Nesta edição, compartilho com você a minha lista de melhores do ano (até aqui).
Enfim, outubro. É um mês que adoro, e não só por causa do Halloween, que rende bastante trabalho pra quem lida com horror, mas também pela transição de estações. Ao menos em condições normais de temperatura e pressão (o que não vem sendo o caso), a primavera dá as caras pra valer. Pra alegria de gente como eu, que adora um céu carrancudo e trovejante, as chuvas vão voltando. Também é um mês que já nos permite vislumbrar o fim do ano, o recesso, o descanso, e no qual a nossa bateria, em tese, ainda tem alguma carga.
Mas não vou negar, adoro outubro principalmente por causa do Halloween. Aqui deixo de lado as problematizações decoloniais pra ficar no âmbito da memória afetiva. Não me lembro de celebrar a data no colégio em que estudei, mas, em casa, fazíamos maratonas de filmes de horror. Eram organizadas pela minha mãe, fã do gênero, mas meu pai também costumava participar. Minha irmã um pouco menos, ela não era tãão fã de levar uns sustos.
Nesse espírito nostálgico, pensei em listar aqui o que de melhor li e vi dentro do gênero neste ano. Pelo menos até agora.
Sem mais delongas e sem ordem de preferência (entre parênteses, o ano de primeiro lançamento/publicação da obra):
Cupim (2021), romance de Layla Martínez
Se você me acompanha por aí, deve estar cansado de me ouvir falar do livro da espanhola Layla Martínez. Mas eu não resisto, Cupim é mesmo uma das maiores revelações do ano, pra mim. Até ajudou a reformular o meu projeto de pós-doutorado (você pode ler o ensaio que escrevi aqui). Lançado no Brasil pela Alfaguara, o livro é uma façanha, com o feminismo como pedra angular. Trata de duas mulheres, avó e neta, que vivem em uma casa assombrada perto de um povoado espanhol e são, elas mesmas, perturbadas por fantasmas.
À primeira vista, Cupim é uma ghost story como tantas outras. A casa assombrada em que as duas vivem logo figura como uma extensão do corpo e da mente delas: assim como a avó e a neta, o lugar é cheio de sombras que se movem, perdidas e famintas. Mas o livro escancara sua atualidade quando descobrimos as origens desses fantasmas, bem como das atitudes das protagonistas. O horror sobrenatural, aqui, se abre como um território de justiça no qual dinheiro, poder e força física não têm prevalência alguma. É maravilhoso testemunhar esse acerto de contas cruel e violento.
Exquisite corpse (1996), romance de Poppy Z. Brite
Se há males que vêm para bem, há livros que vêm para mal. Como Exquisite Corpse, do autor estadunidense Poppy Z. Brite. Publicado em 1996 e ainda inédito no Brasil, este romance sobre um casal gay de assassinos seriais é nada menos do que brutal. Foi uma das leituras mais pesadas que já fiz, e, se você acompanha meus textos, sabe que é raro eu me referir dessa forma aos livros que resenho.
As cenas de violência são minuciosas e imaginativas como poucas vezes eu li, e há sexo bestial por todos os lados. Mas a força do livro não vem daí, até porque são incontáveis as obras apelativas nesse sentido, sem valor literário. Exquisite Corpse se destaca porque seu autor, um homem trans, é alguém de enorme talento para construir personagens, e também para a escrita. Sempre afirmei aqui que horror, o horror para valer, depende da nossa empatia, de sentirmos junto com as personagens – tanto as que atacam quanto as que sofrem. E quando nos deparamos com Andrew, Jay, Tran e Luke, o núcleo principal do romance, fica evidente o triunfo de Brite nesse sentido.
Imperdível. E um crime que ainda não tenha sido traduzido pro português.
Propriedade (2023), longa de Daniel Bandeira
Achei agudíssimo este filme escrito e dirigido pelo pernambucano Daniel Bandeira. Simples, com grandes soluções, uma ou outra parte confusa, mas que vai direto ao ponto. A história parte de uma pergunta-vespeiro: a quem pertence mais a terra – neste caso, uma fazenda? Aos trabalhadores que a mantêm por décadas, ou aos patrões que aparecem lá de vez em quando?
Quando os trabalhadores descobrem que a fazenda será vendida e todos serão despejados sem um tostão furado, dá-se a revolução local. A esposa do proprietário, Tereza (Malu Galli), fica presa dentro de seu carro blindado enquanto o mundo lá fora se incendeia. É impressionante a tensão que Bandeira consegue criar. Ah, está no Netflix.
Un lugar soleado para gente sombría (2024), coletânea de contos de Mariana Enriquez
É o mais recente livro da Enriquez, a mayoral. Ainda sem edição no Brasil (mas disponível em versão digital, em espanhol), comprei-o em Alcalá. Depois das duas coletâneas anteriores dela, este traz um leve sabor de mais do mesmo — mas mais do maravilhoso mesmo. O nível fica lá em cima, e, ainda que seja irregular como qualquer coletânea, nele há contaços, como “Ojos negros”, sobre funcionários de uma ONG que cuidam de pessoas em situação de rua e são abordados por meninos que representam o mais puro mal.
Destaco também o conto que batiza a coletânea, sobre uma jornalista que vai investigar o desaparecimento (real) de uma chinesa num hotel de Los Angeles. E o “Diferentes colores hechos de lagrimas”, que trata de "roupas assombradas": um ricaço "machucava" as roupas da mulher que o traiu, em vez de machucá-la. Outro ponto alto é “Metamorfosis”, sobre uma mulher que implanta nas próprias costas um tumor que retirou. Enriquez é um vulcão de ideias perturbadoras e a prosa dela anda melhor do que nunca. Adorei reencontrá-la como contista, depois de Nossa parte de noite.
Häxan (1922), documentário de Benjamin Christensen
Nunca tinha visto esse clássico, e que bom que o fiz. É um portento! Num formato híbrido de documentário com ficcionalização, o filme discute a bruxaria ao longo dos séculos. São muitas as imagens que grudam na retina e na memória, em especial as de sabás. As encenações são magníficas, ainda mais ante todas as limitações da época. A sequência de tortura da velhinha pela inquisição é assombrosa, quase traumatizante.
Häxan é mesmo um tremendo apanhado de feitiçaria e satanismo, desde a idade média até o começo do século 20. Já traça associações com a histeria, assumindo um posicionamento refratário às caças às bruxas, ainda que de maneira bem incipiente e por vezes enviesada. Mas um grande filme, mesmo assim. E a versão restaurada (e com legendas) está a um clique de distância, no YouTube.
Entrevista com o demônio (2024), longa de Colin e Cameron Cairns
Outra boa surpresa de 2024. O longa dos irmãos australianos Colin e Cameron Cairnes combina riso e arrepio de forma inteligente e, apesar de ter um desfecho levemente frustrante, pra mim segue como um dos destaques do ano. Na sequência de abertura, temos imagens que estabelecem o panorama no qual o enredo se insere: a atmosfera de paranoia que se instalou nos EUA durante anos 1970, com a difusão do ocultismo e de seitas satânicas (satanic panic). Na voz de Michael Ironside (de Scanners, de David Cronenberg), a narração em off explica ser nesse contexto que surge o programa noturno de entrevistas Night Owls, apresentado por Jack Delroy (David Dastmalchian, brilhando), com um episódio que ficou marcado por acontecimentos assustadores.
Daí em diante, Entrevista com o Demônio abandona o documentário para assumir o formato de found footage, com a transmissão na íntegra do fatídico episódio, incluindo cenas de bastidores. A estrutura é um grande acerto do filme, pois, no momento em que de fato ele começa, nós já estamos envolvidos, absortos pela fotografia setentista de Matthew Temple e pelo desenho de som felpudo e cheio de chiados, como se viesse de um disco de vinil. Imperdível! (Está disponível pra alugar no YouTube e no Amazon Prime).
A Estrada (2024), graphic novel de Manu Larcenet (adaptando Cormac McCarthy)
Tremenda adaptação pros quadrinhos de um tremendo livro. A arte suja e sinistra do francês Manu Larcenet aprofunda aspectos perturbadores do romance de McCarthy. O pacto entre pai e filho, os ensinamentos, a pedagogia violenta do mundo devastado, grandes forças do romance do McCarthy, continuam lá, muito bem plasmadas ao formato da nona arte.
É uma leitura absorvente e marcante, como o romance também. A decupagem transmite muito bem a passagem do tempo, toda a montagem é impressionante. Livraço! Saiu no Brasil pela Pipoca & Nanquim.
Bramayugam (2024), longa de Rahul Sadasivan
Pode procurar nas listas de melhores filmes de horror do ano: é bem provável que o indiano Bramayugam esteja lá. Pudera: todo em P/B, começa que é lindo de ver. Foi produzido no coração das florestas da Costa do Malabar, no sul da Índia (é um filme malaialo, de "mollywood"). A história também fascina. Estamos no século 17, e Thevan, um cantor que escapa da escravidão e busca refúgio em uma mansão isolada no meio da mata, governada por Kodumon Potti, uma figura ambígua.
A atmosfera do filme é envolvente e o enredo se concentra na figura de um vilão/monstro interpretado por Mammootty, um ator de imenso sucesso por lá. O cara é de fato magnético e está caracterizado como um Orson Welles macabro no filme, o goblin que roubou um anel de poder e se tornou senhor do casarão.
O enredo tem essa coisa de conto de fadas sinistro, meio como Tumbbad, outro filme indiano de horror que adorei. E Bramayugam ainda traz um arremate político no final que chega a atordoar. Faço apenas uma ressalva às cenas de luta, um tanto simplórias. No mais, concordo com quem o coloca nas listas de melhores do ano.
Ah, o filme é meio difícil de encontrar. Infelizmente não está em nenhuma plataforma (ainda).
Exhuma (2024), longa de Jang-Jae-hyun
Outro habitué das listas, agora vindo da Coréia do Sul. Um filme repleto de macumba sul-coreana, com conceitos interessantíssimos (tipo o da geomancia praticada pelo protagonista, Choi Min-sik, de Oldboy), e que vai assumindo uma postura política poderosa ali mais pro final.
Trata de questões que relacionam os mortos ao passado de guerras entre Coréia do Sul e Japão. O geomante e uma xamã são contratados por uma família rica para descobrir o que os está assombrando, o que tem a ver com o lugar onde o patriarca foi enterrado. Este é só o ponto de partida pruma história impressionante, elaborada a partir da ideia de “quanto mais cavamos, mais sujeira encontramos”.
É um filme episódico, com partes menores dentro de três partes maiores. Aliás, pra mim este seria o único problema dele: em certo momento, parece se estender mais do que o necessário. O clímax, a meu ver, é o trecho em que o demônio/yokai aparece pela primeira vez: aquilo é um transe, uma cena inesquecível. De fato, um dos grandes do ano.
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Agora você deve se perguntar: e o A substância? Olha, adorei o filme, é um desvario divertidíssimo, mas que foi diminuindo na minha memória, devo confessar. Este texto do Marcelo Miranda expressa bem minha sensação. E também não o vejo exatamente como um filme assustador, no sentido de que o absurdo se impõe ao pacto realista; entendo-o mais como uma sátira, toda ela codificada pelo horror corporal. Ficaria com menção honrosa, vai.
Flip, oficina, palestras e mais
Enfim, outubro é mesmo um mês de bastante trabalho pra gente, então agora quero fazer alguns convites. Semana que vem (de 9 a 13) tem a Festa Literária de Paraty, e lá estarei em duas mesas, ambas no dia 10 (quinta): uma às 10h da manhã, sobre João do Rio e Chiquinha Gonzaga, na casa da Estante Virtual, com a Úsrula Antunes e mediação da Barbara Krauss; e outra às 15h da tarde na casa Sete Selos, sobre terror e fantasia à brasileira, com o Luiz Antônio Simas e mediação da querida Ana Rüsche. Se você estiver em Paraty, apareça pra me dar um abraço!
Antes, no dia 9, darei uma palestra online no Mackenzie falando sobre relações entre bíblia e literatura de horror. Será às 14h e será aberta ao público (aqui tem o link de acesso). Ao longo do mês ainda acontecerá minha oficina de escrita de horror no Astrolábio — online, também. A primeira aula aconteceu ontem, dia 3, mas você ainda pode se inscrever por aqui. Por fim, no final do mês, de 29 a 31, acontecerá o 5o SEG, Seminário de Estudos do Gótico. Participarei do evento mediando uma mesa e apresentando um trabalho ao lado dos amigos Cristhiano Aguiar e Marcelo Miranda. Tudo online, também!
Acho que é isso. Ali pro final do mês eu volto.
Um abraço,
Oscar
curiosão por esse Bramayugam. Boa lista de sugestões!
Quero muito ler esse novo da Mariana Enríquez!
Obrigado por compartilhar essas dicas!