TerraTreva #3 - Vem comigo pra Transilvânia
Esta será uma edição bem especial da newsletter. Se você me acompanha por aqui ou pelas redes, deve ter percebido que eu andava monotemático nas últimas semanas...
O monotema em questão era a viagem pra Transilvânia. Confesso que estava muito ansioso com ela, por alguns motivos que explicarei melhor abaixo. E já adianto que a aventura superou minhas expectativas. Escrevi sobre ela pra Galileu e escreverei também pro site e pra newsletter da editora Fósforo, além de outros projetos que vão surgindo. Mas aqui você acompanha os bastidores das minhas andanças, com mais aflições e êxtases do que aparecem nos textos em outras plataformas. Então te agradeço por estar comigo - e por compartilhar a edição, se achar que for o caso.
Midian particular
Eu vinha sonhando com essa viagem desde meus 14 anos, por aí. Desde o fim da infância e por causa de fillmes e livros vampíricos, a Transilvânia virou um refúgio pra mim, pros meus devaneios e pra minha imaginação. Eu via fotos e cenas da região em livros e filmes, e expandia tudo na minha mente, completava os cenários. Era natural. Não sei bem se pelo caráter exótico do lugar, pelos mistérios com que a “terra além da floresta” (a tradução de “Transilvânia”) sempre nos foi apresentada desde Bram Stoker, ou mesmo antes. A região virou minha Midian particular – se você leu Cabal (Raça das trevas), do Clive Barker, sabe do que falo. Uma terra de monstros e pesadelos sem os quais eu jamais conseguiria viver.
Agora, devo o empurrão pra enfim realizar o sonho a uma leitura específica: Poderes das trevas, a versão sueca e expandida de Drácula, de autoria desconhecida e publicada em folhetim poucos anos depois do lançamento de Bram Stoker. É a novidade mais espetacular dentro do universo vampírico nas últimas duas décadas. E felizmente, pra nós do Brasil, a Ex machina e a Clepsidra lançaram uma edição tão espetacular quanto, traduzida diretamente do sueco. Pra você ter uma ideia, não há edição em espanhol - o David Roas ficou de orelha em pé quando comentei.
Pois bem, no começo deste ano (2023) eu estava lendo o primeiro capítulo do livro, em que Thomas Harker (os nomes de alguns personagens mudam) chega à Transilvânia e fica preso no castelo do conde. Eu já tinha acertado minha vinda a Alcalá de Henares para o pós-doutorado quando me ocorreu: e seu eu viajasse à Romênia usando Drácula/Poderes das Trevas como mapa? Isto é, e se passasse por Klausenburg (Cluj Napoca), Bistrita e chegasse perto de onde estaria o castelo fictício? Sim, porque o castelo descrito por Stoker no livro não existe na realidade.
Larguei o livro e fui procurar passagens. Pra minha felicidade, havia voos de Madri a Cluj Napoca – e voos low cost! Os únicos, na verdade. Comprei passagens pro começo de dezembro e me arrepiei, como me arrepio agora ao lembrar.
De lá pra cá, minha cabeça não parou. Como seria o reencontro com o meu imaginário pré-adolescente? Seria frustrante? E se a viagem fosse um fiasco, por qualquer motivo? Todo tipo de insegurança passou pelos meus pensamentos.
Uma viagem literária/histórica
Corte seco, então, pra algumas semanas antes de embarcar, porque eu não tinha definido exatamente o trajeto. Tenho um jeito meio maluco de organizar viagens. É um sanduíche kamikaze. Compro as passagens - as fatias de pão - e no meio vou colocando o que quero. A única regra de ouro: nunca recorrer a agências de viagens ou roteiros pré-definidos. Quero a liberdade total de ir e vir quando e como preferir.
O problema é que na Romênia eu teria só seis dias e queria colocar muita coisa no miolo. Só o Drácula me deu dois destinos; e eu não poderia passar pelo lugar sem procurar os rastros de Vlad Tepes, personagem histórico que inspirou o conde. Então defini que seria uma viagem histórico-literária. Passaria por Cluj, Bistrita, passo Borgo, Sighisoara (onde Tepes nasceu) e Brasov, que por muito tempo foi a cidade mais importante da Transilvânia.
Mas não daria pra fazer tudo isso de trem e carruagens. Assim sendo, aluguei um carro, por um preço até que bom, se compararmos com o restante da Europa. Mas aí veio a minha maior aflição pré-viagem: descobri que precisaria de uma permissão internacional pra dirigir, coisa que não tenho e não conseguiria até lá. Caso não rolasse o carro, teria que fazer os deslocamentos de trem ou ônibus. E aí sim eu estaria lascado, porque ambos os modais são muito demorados por lá. A viagem corria sério risco de naufragar.
Então vocês imaginam os meus nervos quando, no dia 1o de dezembro, acordei o galo pra pegar o ônibus de Alcalá até o aeroporto de Madri. Também estava apreensivo porque a WizzAir, companhia low cost húngara pela qual voaria, era super mal avaliada, sobretudo pelos atrasos. Oh, céus: atraso + trens e ônibus lentíssimos: eu corria o risco de mal sair de Cluj Napoca! No lugar do sonho, uma interminável dor de cabeça.
Pois bem, o voo não atrasou e, quando cheguei a Cluj, fui correndo até a locadora (literalmente, porque ela fica fora do aeroporto minúsculo e não tinha transfer). Chegando lá – um “contêiner” cercado de carros –, corri até o atendente, um jovem pálido, de belos e longos cabelos negros. Num inglês de sotaque fortíssimo, ele perguntou da minha permissão internacional, eu enrolei, disse que não sabia que precisaria, mostrei minha CNH, meu visto espanhol, etc.
O rapaz sumiu atrás do balcão e nos seis ou sete minutos seguintes minha vida passou diante dos meus olhos. Espiei e vi que ele estava falando com alguém por whatsapp.
Então, levantou a cabeça e disse:
– It’s ok. You can take the car.
Alívio, alívio! O peso no coração desapareceu e a Transilvânia ressurgiu em todo o seu esplendor sinistro diante das minhas expectativas. Com um detalhe maravilhoso: o carro alugado se chamava ARKANA. Morcegos me mordam, um corcel chamado Arkana!
Esse longo preâmbulo foi necessário pra vocês entenderem o meu estado de espírito. Como diz minha analista, foram dias de muito “investimento psíquico”. E eu mal tinha ideia de que esse investimento todo estava só começando.
Ah, e por sugestão de nossa querida leitora Julia Mazaia, vou compartilhar músicas que estava ouvindo enquanto cavalgava pela Transilvânia.
Cluj Napoca - Bistrita
Montado no corcel Arkana, saí dirigindo por Cluj Napoca. No GPS do celular, baixei o trajeto de Cluj até Bistrita (de cerca de 1h40) e lá me fui. Logo vi que precisaria ser bem cauteloso. As estradas na Romênia são boas, mas muitas atravessam vilarejos e cidadezinhas onde há rotatórias e faixas de pedestres - nas quais somos obrigados a parar. As pessoas nem conferem se você freou; só vão atravessando. Sim, no meio da estrada, sem semáforos.
Toda atenção é pouca. Além disso, as paisagens logo se mostraram fascinantes. Saí de Cluj por volta das 16h e já começava a escurecer. O dia estava nublado, úmido, e uma névoa fanstasmagórica cobria os esqueletos de árvores das florestas ao redor. Confesso ter tirado várias fotos enquanto dirigia. Imprudente, sim, mas estava abismado com o cenário. Podia ser tão próximo das minhas imaginações de moleque? Sim, podia.
No caminho, também chamavam a atenção as cúpulas das igrejas ortodoxas, religião predominante no país, além de construções góticas e igrejas fortificadas (construídas pra serem fortalezas em tempos de batalha - são mais de 100 na Romênia e o conjunto é patrimônio da humanidade da Unesco).
Fazia frio, mais frio do que na Espanha. Nos seis dias que passei lá, peguei uma média de dois graus acima a três ou quatro abaixo de zero.
Algumas músicas que ouvi durante a viagem: Quite unusual (Front 242), Smaller (Ashbury Heights), Walk into the broken night (Orphx)
Cheguei a Bistrita quando já estava escuro, por volta das 17h30. A cidade é relativamente grande, de ruas arborizadas. Me hospedei no hotel Coroana de Aur (Coroa de Ouro), assim batizado por conta da estalagem Golden Crown, onde Jonathan Harker se hospeda no romance de Stoker. Ao sair pra procurar algo pra comer, a simpática atendente não me deu um crucifixo, mas me informou de que quase tudo estaria fechado: era feriado nacional no país, o dia da unificação nacional.
Saindo do hotel, me deparo com um pequeno desfile militar. Soltados marchando, cantando o hino romeno e segurando tochas(!). Certo, eu já estava suscetível por todo o contexto, mas achei arrepiante.
No geral, diria que Bistrita é um bom ponto de pernoite para seguirmos adiante pela Transilvânia, nada mais.
Bistrita - Passo Borgo - Sighisoara
No dia seguinte, acordei cedo, andei um pouco pela cidade e logo peguei a estrada, rumo à passagem Tihuta, o nome romeno pro “passo Borgo”. No caminho, a cordilheira dos Cárpatos – que até ali estava acanhada – já se impõe mais. Lembrando que é uma cadeia montanhosa imensa, que abrange a República Tcheca, Eslováquia, Polônia, Ucrânia e Romênia.
No romance do Stoker, o passo Borgo, onde o Harker é deixado até que uma carruagem do conde venha buscá-lo, é um desfiladeiro sinistro. A passagem Tihuta, por sua vez, é um vale em meio a morros que quase não se percebem.
Foi aqui que me despedi de Harker e parti em busca de Vlad Tepes rumo a Sighisoara.
Nas duas horas e meia de viagem até a pequena cidade, o desafio volta a ser manter os olhos na estrada. Os Cárpatos crescem, ficam mais imponentes e ameaçadores. Mesmo ao meio-dia, a névoa paira densa sobre as florestas mortas, corvos crocitam e ursos estão à espreita – o país tem a maior população de ursos pardos da Europa. Depois do anoitecer, o crocitar dá lugar a uivos, e não apenas de cães. Um sonho – ou pesadelo, dependendo do ponto de vista.
Algumas músicas que ouvi durante a viagem: It’s darker than you think (Carpathian Forest), Transmigration (Voice of Eye), Winter bane (Abbath)
No meu caso, Sighisoara me aprofundou no sonho em que eu já vivia. Pequena, bem menor que Bistrita, é conhecida pela cidadela no topo de um monte, cercada por muros. Circulando por ali, captei um bom resumo da história geral da Transilvânia: o lugar foi fundado no século 11 por saxões; passou ao domínio do reinado húngaro; no século 16, o império otomano assumiu o controle e o deteve até o século seguinte, quando a região passou às mãos dos Habsburgos, nas quais permaneceu até o começo do século 20, a seguir sendo incorporada pela Romênia.
Esse contexto é importante pra gente perceber a riqueza e a complexidade da região, da qual, do ponto de vista romeno, Vlad Tepes é só uma pequena parte. Pequena, mas importante: voivoda (governante) da Valáquia no século 15, ele exerceu papel determinante na defesa da região contra o império otomano. Fora da Transilvânia, é conhecido pelos castigos cruéis infligidos a inimigos derrotados, o empalamento sendo o mais famoso. Mas sua figura não se restringe a isso – o que explica o embaraço, ou mesmo a frieza, com que romenos recebem a empolgação de estrangeiros em busca dele (meu caso).
Sighisoara - Brasov
Fiquei um dia e meio em Sighisoara, período que considerei ideal. No dia seguinte, mais um passeio pela cidadela ao amanhecer (tão evocativo quanto o anoitecer) e pé na estrada, rumo à última parada: Brasov.
Uma hora e quarenta minutos depois atravessando vilarejos no corcel Arkana – passei também por Targu Mures, importante cidade local –, chego. E me deparo com outro tesouro da Transilvânia. Encostada nos Cárpatos, aqui imensos, Brasov foi, até o século 18, a parada obrigatória da região.
Algumas músicas que ouvi durante a viagem: Lethal compound (Front Line Assembly), Black plague (Vomito Negro), Sunspot (Of the wand and the moon)
Lá está a Igreja Negra, monumental catedral gótica do século 15 que tem esse nome por conta de um incêndio que destruiu sua parte interna e escureceu sua estrutura exterior. A igreja sempre teve grande importância para os religiosos locais, pois sua localização a leste faz com que marque posição nos limites do mundo cristão.
Na cidade, chama a atenção a grandiosidade decadente, o espectro de uma belle époque há muito encerrada. De certa forma, a qualidade fantasmagórica do centro histórico combina com a cordilheira coberta por névoas ao redor. Aqui não há registros da passagem de Vlad Tepes – à exceção de uma breve estadia no castelo Bran, do qual falarei a seguir – nem do Drácula de Bram Stoker. Mas o Museu da História de Brasov, situado na ampla praça que é o coração da cidade, mais uma vez nos mostra que há muito mais a se encontrar na região além desses rastros.
Brasov foi a única cidade em que pernoitei duas vezes - e se você planeja ir à Transilvânia, recomendo que faça o mesmo. Porque lá do lado, a pouco mais de meia hora de carro, está o Castelo Bran, que virou o “Castelo Drácula” meio que sem fundamento algum além da mera exploração turística. Há umas salas temáticas, com projeções e um manequim fantasiado de Drácula. Fazer o quê? Mas no final a visita vale demais, porque o lugar é esplendoroso. Ainda mais sob a fina camada de neve que caía.
O Castelo tem sua própria história: ele data do século 13 e, a partir do final do século 19, foi a residência da rainha Maria, a última rainha consorte romena antes da revolução socialista. Hoje, ainda percence ao que restou da nobreza local.
E te conto um segredo: passei lá meu aniversário. Abaixo, o meu almoço, um espaguete à bolonhesa decente, mas sem taça de vinho porque ia cavalgar:
Brasov - Cluj Napoca
No dia seguinte, um último passeio pra me despedir da mágica Brasov e pé na tábua, porque eu tinha quatro horas de chão pela frente. Voltei num chute só até Cluj Napoca, de onde, na madrugada seguinte, voaria de volta a Madri. Viagem tranquila, em boa parte escoltada pelos Cárpatos nevados:
Algumas músicas que ouvi durante a viagem: Eclipse (Kirlian Camera), The golden fields (Bong), The baneful choir (Teitanblood)
Cheguei a Cluj no começo da tarde, o que me permitiu circular um pouco por lá. É a maior cidade da Transilvânia, conhecida pelas universidades e indústrias que abriga. Aqui, nosso encontro é com a história mais recente da Romênia. A imponência de alguns prédios públicos e as estátuas gigantescas exaltando figuras locais nos lembram de que estamos em um país que, de 1965 até 1989, fez parte da cortina de ferro, sob as asas da União Soviética.
É, aqui definitivamente me despedi da Transilvânia enevoada, uivante e montanhosa. No dia seguinte, madruguei pra voltar a Madri. Em boa parte da viagem meus olhos ficaram marejados, e não de sono. Não é comum que sonho e realidade se aproximem tanto. Nesses meus seis dias na região, percorri séculos e perdi o rumo da minha idade. Completei 43 anos na Transilvânia, mas andei por lá como quem tivesse ainda 14, tomado pelo deslumbramento e pelo arrebatamento da idade. Foi muito especial e te agradeço se você leu até aqui.
Aliás, no momento em que essa edição foi enviada, estou no avião rumo a Amsterdã. E só agora pensei na coincidência: depois de ir atrás de Drácula, vou pra terra do Van Helsing, veja só.
E a tia Domingas?
Essa vai voltar com tudo na próxima edição, pertinho do final do ano. Mas pra tranquilizá-la, digo que os trabalhos estão caminhando até que bem. Capítulo sobre gótico entregue, texto de organização de livro iniciado, pesquisa aqui caminhando (ainda que bem nos preâmbulos…). As recomendações de leitura também ficarão pra próxima.
Aliás, é, o final de ano está aí. No dia 24, encontrarei minha irmã, que estará em Madri com a família de uma amiga, e a virada passarei em Segóvia, uma cidade histórica perto daqui. Mas ficarei lá poucos dias. As aulas na Universidad de Alcalá começam cedo em janeiro, já no dia 8, então quero estar a todo vapor.
Com isso, vou me despedindo. Falei bastante nessa edição, mas espero que você tenha gostado - e se gostou, te convido a compartilhá-la.
Como bem disse a querida Ana Rüsche (que assina a imperdível Anacronista), essa edição trata de uma viagem que começou aos 14 anos e terminou hoje. Mas acho que continuará em mim até o final da vida.
Um beijo, um abraço ou uma saudação cordial, o que te convier,
Oscar
Que viagem incrível, meu amigo! Nada melhor do que realizar sonhos 🤩
guardei para ler com calma, muito bonito te ler (e obrigada pela menção).
que a gente possa sempre se reencontrar conosco aos 14 anos! cuide-se aí 🖤