TerraTreva #6 Pensamentos sobre horror feminista: dois livros ótimos e um nem tanto
Depois de um longo hiato, volto com ponderações sobre livros que assustam enquanto acertam contas - ou que tentam e fracassam
Pra começar, peço desculpas pelo intervalo entre a última edição e esta. Juro que tentei elaborar algo na semana passada, mas não deu: o tempo quase todo foi ocupado por aquele grande trabalho que mencionei nas newsletters anteriores, sobre o qual ainda não posso falar. Odeio dar essa de misterioso, mas é questão contratual… O prazo final desse trampo era 31 de janeiro, anteontem, e consegui atendê-lo. Então valeu a pena passar a edição pra essa semana. Prometo tentar recompensar o silêncio com um relato mais amplo do que tem acontecido por aqui em Alcalá.
E o que tem acontecido é muita leitura, tanto relacionada a trabalho (pesquisa, principalmente) quanto recreativa. Parando pra pensar sobre isso, me ocorreu que quase todos os livros que tenho lido são de mulheres, e todos, sem exceção, dentro do fantástico e/ou do horror.
Por alguns motivos: primeiro, porque minha pesquisa aqui está centrada nisso, com os contos da Cristina Fernández Cubas e da Lygia Fagundes Telles. Segundo, porque nas aulas e nas conversas que ando tendo com professores da universidade, sempre pipocam nomes de autoras que me chamam a atenção. Terceiro, porque as livrarias pelas quais passei na Espanha estão inundadas de bons lançamentos de autoria feminina, sempre com bastante destaque. As (boas) livrarias brasileiras também, já faz um tempo, mas por aí não vejo tanto esse enfoque na literatura não mimética, pra usar um termo que conheci aqui e que me parece certeiro.
Por isso, pensei em compartilhar com você alguns pensamentos a respeito do horror de autoria feminina e também do horror feminista (são coisas bem diferentes, vale ressaltar). Será uma espécie de balão de ensaio de ideias que pretendo desenvolver melhor no texto que elaborarei como resultado do pós-doc. Essas reflexões vão passar pelo fantástico, claro, mas vou centrá-las no horror, que acaba sendo meu objeto de pesquisa de preferência.
Já adianto que não tratarei da maioral desses campos, a Mariana Enriquez, por um simples motivo: já falo demais dela em tudo quanto é lugar. Se você quiser dar uma olhada no que escrevi a respeito da mestra-mor, te convido a ler esta entrevista que fiz com ela sobre o romance Nossa parte de noite, este texto, sobre Os Perigos de Fumar na Cama e esta outra entrevista, sobre As Coisas que Perdemos no Fogo. Mas que fique entendido que a Enriquez estará implícita nessa edição, de uma forma ou de outra.
Irene Solà e o grotesco que salva
Por exemplo, foi um endosso dela que me levou a ler Te di ojos y mirastes las tinieblas (Te dei olhos e tu contemplastes as trevas, em tradução livre), da catalã Irene Solà, lançado há poucos meses aqui na Espanha e já na quarta reimpressão. A recomendação da Enriquez estava numa cinta que envolvia a capa – aliás, muito evocativa:
E que grata surpresa foi ler este livro. Já falei dele em outra edição newsletter, de passagem, mas vale aprofundar o papo. Eu não o situaria exatamente no campo do horror, embora haja cenas sórdidas e arrepiantes o suficiente; está mais prum grotesco, tanto pro lado da repulsa e do macabro, quanto do riso. É o grotesco sob uma luz feminina, porque só há mulheres em cena; os homens não chegam nem a ser coadjuvantes, são meros acessórios na composição de Solà. Além disso, há muita magia ligada à ancestralidade, à terra, aos elementos. E a relação entre as mulheres, embora selvagem e violenta, é marcada por uma sororidade subjacente, que não aparece, mas está sempre ali.
O enredo, em linhas gerais: durante uma noite, um grupo de mulheres de uma mesma família espera pela morte da velha Benedetta. Todas estão em um casarão de campo enfiado nos ermos das Guilleries, cordilheira na Catalunha. O fio condutor do romance é o pacto com o diabo feito por Joana, a matriarca, muitos anos atrás; ela consegue o que queria, um homem, mas um homem portador de uma deficiência física. Frustrada, Joana desfaz o combinado. Engana o enganador, que por sua vez se vinga fazendo com que todos os bebês de sua família (sempre mulheres) viessem deformados - ora sem uma parte do coração, ora sem a língua, sem a memória, sem a capacidade de sentir dor, etc.
Por meio de digressões temporais que vão desde os primórdios da guerra civil espanhola até anos recentes, essa trupe desfila à nossa frente dançando, trepando e principalmente gargalhando. São histriônicas, malévolas e compassivas as mulheres deste romance em que tudo é distorcido, até o formato – a escrita é decepada e episódica, e a narração é polifônica, quase todas as personagens se pronunciam (o que às vezes dificulta acompanharmos o fluxo, pois são muitas vozes). Mas às deformações, à violência, aos abandonos e às perdas, elas sobrevivem, e sobrevivem porque permanecem juntas, emprestando forças umas às outras.
Vale dizer que o livro foi escrito em catalão e traduzido pro castelhano. Esse emaranhado de idiomas aqui é uma loucura. A Espanha é mesmo plurilinguística…
Carcoma (Cupim) e o fantástico que acerta contas
A seguir li outro ótimo livro, este sim de horror evidentemente feminista: Carcoma, da espanhola Layla Martínez. Aliás, boa notícia, ele vai ser lançado no Brasil pela Alfaguara batizado de Cupim.
Existem até uns pontos de contato com o romance da Irene Solà: a história se concentra em uma casa no interior da Espanha (lugar não especificado, porém perto de Madri) e é protagonizada por mulheres, ainda que em menor número do que no livro da catalã. São duas, basicamente, avó e neta, e elas vivem entre fantasmas, muitos fantasmas.
À primeira vista, Carcoma é uma ghost story. Avó e neta moram em uma casa assombrada que logo figura como uma extensão de seus corpos e suas mentes: assim como as duas, a casa é cheia de sombras que se movem, perdidas e famintas. Martínez cria umas cenas muito boas, cinemáticas mesmo, em que o olhar da avó e da neta quase flagra os fantasmas se escondendo; mas elas só chegam a ver um pé que se recolhe pra baixo da cama, uma mão que fecha a porta de um armário. Elas sempre chegam tarde demais, mas veem o suficiente pra nos inquietar.
Em meio a esses fantasmas, há duas ausências que conduzem o desenvolvimento do enredo: a filha/mãe da avó e da neta (nenhuma delas é nomeada) e um menino, filho dos Jarabo, família rica da região pra qual a neta trabalhou por um tempo como babá e doméstica. O garoto desapareceu por um suposto descuido da neta, e toda uma investigação se deflagra.
Na conexão entre casa e corpos/cabeça fantasmagóricos, temos uma fusão das duas principais concepções de locus horribilis dentro da cronologia das histórias góticas: o espaço geográfico, objetivo (castelos, casas, etc), e o espaço psicológico, subjetivo (a partir de Henry James e Shirley Jackson). E Carcoma escancara sua atualidade quando descobrimos as origens desses fantasmas, assim como das atitudes das duas protagonistas.
Não posso entrar em detalhes, mas eu nunca tinha visto uma costura tão bem elaborada entre violência de gênero e desigualdade social a elementos sobrenaturais.
O fantástico e o horror sobrenatural, aqui, figuram como um território de justiça no qual dinheiro, poder e força física não têm prevalência alguma. E é maravilhoso testemunhar esse acerto de contas. Com um detalhe importante: em nenhum momento Martínez recai no panfletarismo ou mesmo no proselitismo. Ninguém dá palestra. Somos nós que juntamos lé com cré, como tem que ser.
Destaco também a estrutura narrativa: enquanto Te di ojos… é polifônico, este é um dueto. Cada capítulo é narrado por uma das personagens, e elas a todo momento estão em conflito, desmentindo e acusando uma à outra. O livro, então, também entra em um confronto intergeracional; mas as duas acabam se unindo na hora certa.
Em tempo, este eu não comprei pela capa, que não é muito convidativa:
Fui pela dica da Alejandra León, amiga chilena com quem troco ideias sobre horror latinoamericano pelo Instagram. E a quem agradeço demais!
Uma ideia só não faz romance
Bom, falei de dois ótimos livros de horror feminino ou feminista; mas li um bem fraco, devo admitir. Cometierra, da argentina Dolores Reyes, que fez algum sucesso no Brasil (e por aqui também). A história se define em poucas linhas: a personagem-título come terra e, ao fazê-lo, tem visões com pessoas desaparecidas. Não chega a ser horror no aspecto geral; estaria mais prum realismo mágico, como bem disse o amigo Cristhiano Aguiar numa das conversas que tivemos sobre o livro.
Que fique claro que a ideia central de Cometierra tem força, com metáforas precisas de magia e principalmente territorialidade, tão em alta hoje em dia. O problema é que não passa disso. A autora parece incapaz de desenvolver algo sólido a partir dessa premissa. O livro é um rebotalho de episódios, de personagens que surgem do absoluto nada só pra desaparecerem logo depois e darem à protagonista algo que fazer além de ficar bebendo cerveja e dormindo o dia inteiro.
A maior parte das pessoas desaparecidas são mulheres mortas por homens. Há crianças assassinadas, também. Mas é tudo muito frouxo, insubstancial, portanto nada comovente ou perturbador. Nesse sentido, vejo relações com outro livro esquálido que li, Saboroso cadáver, de “horror vegano”, também construído a partir de uma ideia simples e forte: o gado acabou e a humanidade passa a comer a si mesma. Mas Bazterrica não sabe direito o que fazer com a ideia, assim como Reyes. Pena.
Pouco tempo na cidade eterna
No mais, coisas incríveis têm rolado por aqui. Fui pra Roma, que não conhecia, e levei uma surra. Não tava preparado psicologicamente pra esse encontro... Cidade eterna de fato! E mística, mítica, lendária, tudo o que quisermos. Passei só três dias lá e andei por quase todas as partes, mas o que me tocou especialmente foi caminhar pelas ruínas do Forum Romano. Nem sei explicar direito o que senti perambulando por ali; bom, pra você ter uma ideia, me ocorreu que, se tivesse um mal súbito e abotoasse o paletó ali mesmo, eu não acharia nada mau. Também deixei conscientemente de fazer coisas como visitar a Villa Borghese e algumas catacumbas, só pra ser obrigado a voltar.
De resto, já passei da metade da minha estadia aqui e comeeeeço a vislumbrar a volta ao Brasil. Tô morrendo de saudade de muita coisa por lá/aí, mas também quero fazer render esses dois meses que me restam aqui. Dois eventos em especial têm me causado ansiedade boa: um bate-papo sobre horror na Espanha e no Brasil de que participairei na Universidade de Salamanca, no dia 22 deste mês (com transmissão pelo YouTube), e uma conferência que darei aqui em Alcalá sobre horror no Brasil, ainda sem data.
Quanto aos trabalhos, tia Domingas, fique tranquila, está tudo indo bem. Acabaram de sair os dois volumes da coleção Fantásticas, da editora Ercolano, cujas orelhas escrevi, com contos de Mérimée, Sacher-Masoch, Gautier e grande elenco; e agora não deve demorar pra sair a a minha tradução de Fome de Viver, romance vampírico do Whitley Strieber que se transformou no clássico dirigido pelo Tony Scott, com o David Bowie, a Catherine Deneuve e a Susan Sarandon; também escrevi o prefácio. A editora é a Clepsidra.
No mais, entregue aquele grande trampo que mencionei no começo, agora passo a outro, a co-organização de um livro que, penso, vai auxiliar muita gente. Não é Tênebra 2 - A Missão, que também está nos prolegômenos, mas ainda tem chão…
E com essa, me despeço de você. Obrigado por ler até aqui! No meio de fevereiro estarei de volta com novidades pós-dóquicas.
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Tudo anotado aqui! Não li nenhum dos quatro mencionados. E Roma é um absurdo mesmo. Tão antiga e parece que seguirá sendo por muitas eras. Aproveite o restinho da estadia 💛