TerraTreva #8 Quando o horror sai pela culatra
Nesta edição, falo de livros que falham na pretensão de assustar. E também de um debate sobre literatura de horror de que participei em Salamanca.
Primeiro de março de 2024: começa meu último mês em Alcalá de Henares. Quando falo isso pros amigos, todos reagem com um “tá passando voando”. Mas minha impressão é bem diferente. O final de outubro do ano passado, quando cheguei aqui, parece ter ficado séculos atrás. Acho que pensar demais desacelera o tempo… assim como interromper por quase seis meses a vida de sempre. Quando tudo é novo e temos tanta coisa diferente pra absorver, os dias ralentam.
Minhas emoções sobre a volta pro Brasil conflitam. Estou enlouquecido de saudade das pessoas amadas e vai ser maravilhoso abraçá-las. Também vai ser bom encerrar esse período de solitude, tema que abordei na última edição. Já me sinto bem abastecido de mim mesmo, se você me permitir a expressão autoindulgente. Por outro lado, prevejo que sofrerei de saudade de bastante coisa daqui, em especial do que senti. Estranho isso, né? Sentir falta de sentimentos; mas sei que eles só surgiram porque estive aqui, vivendo o que vivi. Muito dificilmente eu os rencontrarei no Brasil.
Também preciso voltar porque a vida prática urge. O pós-doc faz parte de um plano maior, o de lecionar no ensino superior, e já começo a me movimentar nesse sentido. Além disso, quero emplacar logo a publicação do meu novo romance, algo que já começa a me causar alguma ansiedade (ainda que bem administrável). A carreira literária é mesmo cheia de vertigens, cruz credo.
Arrepios, mas de constrangimento
Por falar em romance, vamos ao que interessa nesta edição: horror falho. Já falei disso numa coluna na Galileu, mas queria aprofundar por aqui, até por leituras recentes que fiz. Já aviso que vou falar de literatura e de romances. Deixarei cinema, contos e novelas pra outro momento.
O fato é que, mais do que acontece com outros gêneros, as histórias de horror manuseiam a nossa expectativa antes mesmo de as lermos ou assistirmos. Se você, como eu, conviveu com locadoras de VHS ou DVD, deve se lembrar do poder das capas dos filmes de terror. Umas imagens incríveis, sinopses idem. Aí, você metia a fita no vídeocassete e levava aquele banho de água gelada.
Pior ainda é quando, depois que apertamos o play ou começamos a ler o livro, a própria história arma o circo e não dá o espetáculo. Tudo vai tenso e bem até que um peteleco desmonta a nossa expectativa. Na gramática do horror, essa expectativa tem nome: é o suspense, assim batizado justamente pelo estado de suspensão em que ficamos enquanto esperamos pelo barulho do tiro, como ensinou Alfred Hitchcock. O problema é que muitas vezes o tiro soa como uma biriba, ou nem sequer soa. Sai pela culatra.
Por que isso acontece? Por que às vezes saímos frustrados de uma história que pretende nos arrepiar? Aqui, pensei em debater contigo três possibilidades, tendo em vista a estrutura dessas histórias. Claro, levo em consideração a carga de subjetividade que é indissociável da recepção do horror: cada um de nós experimenta o assombro à sua própria maneira, de acordo com suas próprias vivências. Só que existem elementos e procedimentos indispensáveis, sem os quais o propósito do horror (do latim horrere, arrepiar) falhará desde o início.
Também estou ciente das polêmicas. Se você conhece os exemplos que vou mencionar, é possível que não tenha enxergado as mesmas falhas que eu. Mas aqui me coloco como alguém que, por dever do ofício, precisa radiografar a obra literária de horror – e que encontra uma fratura aqui, um osso trincado ali, um deslocamento acolá, resultando em um trabalho manco. Sempre desse ponto de vista analítico.
O horror falha quando a personagem não é bem construída
Em qualquer história de horror, o veículo de nossas sensações são as personagens. É por meio delas que sentimos a ameaça de uma sombra, de um ruído. É com elas que sofremos e que experimentamos o arrepio. Isto, claro, se nos conectarmos a elas. Pra isso, as personagens precisam ser cuidadosamente elaboradas. Nunca unidimensionais, simplórias ou caricatas, a não ser que a história peça isso e que tal construção seja consciente.
Percebo que muitos livros de horror falham nesse ponto, o que acaba sendo catastrófico no geral. Não importa se a atmosfera for bem construída, se o ritmo da narração for bem conduzido, se as cenas assustadoras forem bem compostas. Sem uma personagem que desperte nossa empatia, tudo vai por água abaixo.
Um exemplo é o personagem passivo e tolo. Geralmente protagonista, muitas vezes o próprio narrador, é a pessoa que transita pela história como se jamais pudesse intervir na teia de acontecimentos. Nunca se antecipa. Só reage a eles, e tamanha é a sua torpeza que logo desejamos sua morte.
É o caso de David Ullman, narrador-protagonista do romance O demonologista (DarkSide, 2015), do canadense Andrew Pyper. Ullman é um professor universitário às voltas com o desaparecimento da filha. Pensa que ela foi levada ao Inferno e parte em busca da menina. O romance tem vários outros problemas, como a trama mal costurada e cenas inverossímeis, mas a falha principal é o próprio Ullman, cujas decisões equivocadas – tomadas para que o enredo funcione – anulam qualquer traço de simpatia ou empatia de nossa parte.
O horror falha quando o livro é mais filme (ruim) do que livro
Já faz tempo que o cinema “empresta” sua estrutura para a literatura. No horror, isso é ainda mais perceptível, dado que filmes do gênero fizeram enorme sucesso. Muita gente resolve escrever horror por conta da influência cinematográfica. E não há problema algum nisso. Pelo contrário, Stephen King, Clive Barker e incontáveis ficcionistas provam como o intercâmbio entre as linguagens pode ser proveitoso.
A coisa complica quando o autor ou a autora não conhece bem os mecanismos literários do horror. Quando as histórias são desenvolvidas sem muitas referências além da sétima arte. Como resultado, acaba se “escrevendo” um filme – com grandes chances de ser um filme fraco.
Das leituras que fiz recentemente, nenhuma exemplifica melhor esses problemas do que o romance La Princesse au Visage de Nuit (A princesa com o Rosto da Noite), do francês David Bry, sem edição no Brasil. O livro traz a história de Hugo, um rapaz que, depois da morte dos pais em um acidente de carro, volta pra cidadezinha onde nasceu e cresceu. E lá encontra velhos demônios, reais e sobrenaturais.
Sim, já lemos ou vimos algo parecido centenas de vezes antes. O que não seria um problema, porque o horror sobrevive também por meio da repetição, dos clichês – desde que manuseados com sabedoria. Não é o caso. Os clichês, aqui, se empilham aos montes. Parece que o Bry quer desafiar a nossa paciência: tudo é previsível e tem cheiro de guardado. Senão, vejamos:
Um grupo de amigos vai se meter em várias confusões pra resolver um grande mistério ✓
A paixão por uma amiga de infância reacende com a volta de Hugo à cidadezinha ✓
A entidade malévola, uma bruxa má, está ligada ao abuso que ele sofreu na infância ✓
O confronto final envolve Hugo resolver questões profundas que traz dentro de si mesmo ✓
Até os cacoetes de filme ruim estão no livro. Tipo erros de continuidade: em certa cena, Hugo chega a um lugar de bicicleta, mas depois volta pra casa de carona, e a bicicleta reaparece em sua casa. Aparentemente volta sozinha. Sem falar em cenas terríficas que são confusas, mal ajambradas…
Enfim, frustrante. Fez algum sucesso na França e pode ser que saia no Brasil. Caso isso aconteça, duas palavras: fu ja.
O horror falha quando a progressão é frágil ou não existe
Histórias de horror, sejam longas ou curtas, também devem respeitar uma regra de ouro: a progressão. A linha mestra que as conduz precisa seguir para cima ou para baixo, sempre encadeando episódios que intensifiquem as sensações nos leitores. Essa linha jamais deve permanecer estática, horizontal. Não basta o mesmo núcleo de personagens por toda a história, os mesmos espaços nos quais ela se dá; a progressão, assim como a construção de personagens, é soberana.
Existem muitos livros em que essa progressão é capenga ou mesmo inexistente. Não seria um problema se se tratasse de um fix up, por exemplo, formato em que histórias independentes se passam em um mesmo cenário, em um mesmo ambiente, ou com personagens interligados. Só que em um romance tradicional, a horizontalidade (chamemos assim) é fatal.
Como exemplo, cito Saboroso cadáver (DarkSide), grande sucesso da argentina Agustina Bazterrica. Nessa distopia de horror em que os animais desapareceram e os humanos comem os próprios humanos, não há uma progressão de fato. É mais uma sequência de episódios, ou contos, cujo pano de fundo é o futuro que fundamenta a história. Um fundamento um pouco frouxo, por sinal, dado que a eliminação de todos os animais impediria qualquer tipo de sequência da vida por aqui. No entanto, a autora sempre tem a prerrogativa da suspensão da descrença.
Ainda assim, a narrativa é frágil: o protagonista, Marcos Tejo, também é do tipo passivo. Mas sua letargia nesse caso é bem justificada, pois ele perdeu o filho recém-nascido e o pai, tão amado, está entrevado. A questão é que isso parece conveniente à função a ele atribuída: testemunhar os episódios de selvageria e brutalidade que se tornaram corriqueiros no universo do livro. Tejo transita de forma sonâmbula por esse mundo terrível, sem muito rumo, até seu "despertar" abrupto, em um desfecho que pra mim soou como pirotecnia. O famoso “isto foi de zero a cem muito rápido”. A linha da história não progride aos poucos; com um ângulo reto, vai da horizontal à vertical.
Por outro lado, Saboroso cadáver é um livro que toca em pontos sensíveis dos tempos atuais – a emergência climática, a desigualdade, o sofrimento animal. O problema – mais um – é que o faz sem sutileza. A brutalidade e a crueza são fundamentais para a autora, isso fica evidente, mas a "boa brutalidade", na literatura ou em outras linguagens, sempre traz algo que escapa aos olhos. E aqui nada escapa, está tudo à vista. Uma pena, pois a ideia é boa.
Mesa-redonda em Salamanca
No mais, semana passada fui a Salamanca, onde participei de um evento chamado “Diálogos para el terror: Brasil - Espanha”, no Centro de Estudios Brasileños da Universidade de Salamanca. Estive ao lado do ilustrador e professor Tomás Hijo e do jornalista Diego Matos, que mediou a conversa. Foi uma noite muito especial, porque marcou meu primeiro evento como autor por aqui. Antes, eu só tinha apresentado minhas pesquisas.
As perguntas do Diego foram certeiras. Acho que deu pra delinear bem algumas diferenças importantes entre horror feito na Espanha e no Brasil, onde questões como desigualdade, racismo e violência urbana parecem bem mais marcantes do que no país europeu. O Hijo, que tem um trabalho incrível como ilustrador, falou muito de monstros, de sua paixão por lendas urbanas e pelo folclore. Claro que ele não fala por todo um país, mas achei legal essa contraposição. De fato foi um diálogo entre expressões de horror mais ligadas à fantasia, e outras mais ligadas a uma visão pessimista da existência.
O espaço do CEB é magnífico. Uma construção do século 16 que foi totalmente renovada, mas mantém alguns traços de séculos atrás. Tem uma biblioteca, um belo auditório e um espaço pra exposições, e uma programação bem movimentada - toda ela dedicada ao nosso país. O CEB é tocado pela Esther Gambi, uma simpatia que ama história de terror e o imaginário brasileiro. Se você quiser espiar o papo e me ver derrapando no espanhol, o vídeo está disponível aqui.
Quanto a Salamanca, adorei a cidade. As ruas estreitas e sinistras à noite, a arquitetura românica, a catedral absurda, a universidade antiquíssima; tudo muito evocativo.
De resto, diria que começo a me sentir pronto pra volta. Esse último mês na Espanha vai ser movimentado, porque tenho mais duas viagens: uma pra Andaluzia, na semana que vem, e outra pra Barcelona, no dia 26. Também estou escrevendo o artigo da minha pesquisa aqui e preciso entregar o capítulo de um livro até o final de março. Vejo tudo isso com muita animação, mas também com certa apreensão RISOSSS.
E pra finalizar, te pergunto: quais livros de horror não funcionaram por você? Me conte nos comentários, a conversa continua lá. E até o meio de março!
Um beijo ou um abraço, o que te convier,
Oscar
Que aula!
A saudades de você é imensa bja