TerraTreva #9 Cinco meses fora da máquina do mundo
Nesta edição, a vertigem de contemplar a vida e perceber algumas convicções desmoronando. E uma apresentação na Universidade de Alcalá que me deixou primeiro nervoso, depois aliviado
Na segunda-feira passada, eu estava na estação Santa Justa, em Sevilla, esperando o trem pra voltar a Madri. Tinha chegado cedo, duas horas antes do horário, e fui tomar um café pra matar o tempo. Achei uma mesinha em uma cafeteria no canto do pavilhão da estação e lá me sentei, observando o movimento.
Tenho feito isso com muita frequência, dadas as seguidas viagens que faço por aqui, a maioria de trem. Me agrada interromper o meu próprio movimento por algumas horas e só contemplar as pessoas indo e vindo. É uma pausa segura, confortável, sabendo que logo depois voltarei à máquina do mundo de Drummond, que
“Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera”
Achei que tivesse perdido os sentidos, mas não. Estão mais alertas do que nunca e por isso, em Sevilla, senti algo diferente.
Enquanto espiava famílias, casais, homens e mulheres correndo apressados rumo a um trem que os levaria pra casa ou um compromisso de trabalho, me veio um aperto. Um incômodo que depois virou desassossego. Como eu tinha tempo, pude analisar esse sentimento e percebi que era consequência de uma desconfiança: será que eu voltaria a participar daquele movimento? Será que dali a uma hora eu voltaria a ocupar meu lugar naquela ciranda gigantesca?
Claro que sim, não perderia o trem por causa de devaneios filosóficos. A questão era mais complexa. Percebi que, na verdade, eu pensava na minha estadia por aqui, que já está perto do final, e isso me levou a pensar na minha vida no geral.
Numa edição anterior da newsletter, comentei que passar meses fora do nosso país e da nossa vida cotidiana é suspender essa vida. Entramos provisoriamente num lugar outro, num tempo outro.
Pensando melhor, é como se fosse uma morte reversível. Nós viramos uma abstração pras pessoas que ficam. Elas sentem saudade (e nós também, claro), mas suas vidas continuam como sempre, enquanto a nossa, não; não como sempre, pelo menos. O sofrimento da distância diminui graças às redes, ao whatsapp. Mas, até aí, nós que partimos poderíamos ser dispositivos de inteligência artificial como no episódio “Volto já”, de Black Mirror, em que a moça grávida perde o marido num acidente e encomenda um pacote de IA pra continuar convivendo com ele.
(Em tempo: mais de uma vez comentei com my girl Zaia que, durante a minha jornada aqui, ela tem estado pra mim assim como a Samantha [Scarlett Johansson] está pro Theodore [Joachin Phoenix] em Her, do Spike Jonze. Seria terrível descobrir que ela, Zaia, conversa com mais seis milhões de pessoas além de mim, como acontece no filme.)
Vida diferente
Agora, perto do final do pós-doutorado, a sensação de suspensão e de morte reversível se intensificou. No Brasil, terei uma vida diferente da que vivi nos últimos anos: como me separei, voltarei a morar sozinho. A minha rotina tampouco será a mesma de antes, porque, além dos trabalhos editoriais e literários, pretendo lecionar e organizarei o dia a dia em torno disso.
Mas o que mais tem mexido comigo, agora está claro, é uma revisão das minhas convicções. Sempre achei ser possível navegarmos pela vida sem nos preocuparmos tanto com as intempéries do mar, sempre acreditando na volta da calmaria. Em outras palavras, eu relativizava perigos, fazendo o meu mínimo pra manter a nau humana mais ou menos firme em meio aos turbilhões – reciclando, cortando carne vermelha, porco e frango da dieta, fazendo nada além de cara feia pra comentários perigosos de amigos, evitando usar carro, e por aí vai. Na minha cabeça, tava de bom tamanho: o trabalho mais pesado que ficasse pra quem se credenciasse.
Agora percebo que as tempestades têm sido cada vez mais perigosas e duradouras, e que não dá mais pra diminuir o que troveja à minha frente. Não dá pra diminuir a minha participação nas intempéries. Falo, sim, de emergência climática, mas também de violência de gênero e das mais diversas desigualdades. O mundo, como está, é cronicamente inviável e caminha rápido para o – ou para um – fim. Lá no fundo sempre senti isso, mas a dinâmica da minha vida em São Paulo me impedia não só de expor essa visão, como também de me posicionar com mais veemência a respeito do que contribui pra essa hecatombe.
Então faço um mea culpa. Nasci e cresci em meio a inúmeros privilégios, muitos dos quais ainda mantenho, e com os quais se forma a redoma que me permitiu viver relativamente alheio ao que acontece ao redor. Amigos e familiares, quase todos se reúnem dentro dessa redoma, o que dificulta a verbalização de certas verdades – ainda mais pra alguém que nunca teve o dom de dizer as coisas na lata, como é meu caso.
Foi preciso que eu me afastasse milhares de quilômetros dessa redoma e viesse a um lugar confortável como uma cidadezinha espanhola pra entender o quão errado seria voltar pra esse mesmo espaço. Não tem como. Não sou capaz de abrir mão de todos privilégios que se mantêm, não serei hipócrita. Mas volto muito mais atento ao mar, às ameaças imediatas e às que se aproximam, e ciente da minha participação na manutenção do barco.
Não que eu ache que a humanidade valha todo este esforço, devo confessar. Mas estamos vivos e entendo que não temos outra alternativa a não ser fazer com que a vida valha apena, ou com que valha alguma coisa. Que seja a felicidade, nossa e de quem está perto de nós, ainda que transitória. Também não sou sádico.
Leituras transformadoras
Tudo isso vem me ocorrendo conforme contemplo, daqui, a ciranda do mundo, e dessa observação fazem parte algumas das minhas leituras recentes. Duas, em especial: o romance Cupim da Layla Martínez, que, como poucas obras antes dele, chamou minha atenção pro absurdo da condição da mulher por meio de uma história de horror isenta de qualquer panfletarismo.
E The conspiracy against the human race, ensaio pessimista do Thomas Ligotti cuja ideia central é a de que a consciência humana é um terrível paradoxo: ao mesmo tempo que sabemos existir, damos um jeito de fingir que essa existência não é só dor e devastação. Eis a conspiração, o ataque à nossa condição verdadeira – essa consciência devia bastar pra que encerrássemos nossa aventura por aqui. É o manifesto antinatalista mais eloquente que existe, fundamentado em outros filósofos do pessimismo como Zappfe, Schopenhauer e Mainländer.
Não acompanho o Ligotti e sua turma em tanto pessimismo, mas tô com eles em relação a abreviarmos essa conspiração. Porém, ACALME-SE: de jeito nenhum me matarei, nunca me ocorreu algo parecido. Não estou nem um pouco deprimido. Só não penso em transmitir a qualquer criatura o legado de nossa miséria.
Pra resumir a questão, evoco não um pessimista, mas um furioso niilista, o Maldoror do Conde de Lautreamont (Isidore Ducasse):
“Recebi a vida como uma cicatriz e impedi que o suicídio a curasse.”
A verdade é que nunca estive tão atento, com o olhar tão fixo no mundo, sem eventuais distrações. Me refiro, por exemplo, a bebedeiras e a noitadas, que por aqui só aconteceram duas vezes, se tanto; claro que não vou aboli-las de vez, tenho um lado dionisíaco bem saliente, que nestes meses só está dormente.
Também contribui pra esse estado alerta a desautomatização, a suspensão da vida como costumava ser. Em outubro passado, me afastei do pavilhão rotineiro pra tomar um café e o tenho observado desde então. E os fatos, pelo menos pra mim, são inquestionáveis. Não cabe mais relativização.
Por outro lado, estou convencido de que, apesar de tudo, podemos tentar fazer com que a jornada até o fim seja boa, pra nós e pra quem está ao nosso lado. Na minha perspectiva, isso implica também prosseguir com o trabalho que tenho feito até aqui: criar histórias, traduzir histórias, entender porque algumas dessas histórias nos fascinam tanto e tentar compartilhar tudo isso com as pessoas.
Pelo menos essa convicção se mantém. Cercado por tanta gente maravilhosa e tantos livros incríveis, e podendo viver tantas coisas especiais, vai ser difícil mudá-la.
Minha palestra na Universidade de Alcalá
Pra dissipar a atmosfera pesada dessa edição, te conto que ontem, 14 de março, foi um dia especial por aqui. Foi quando apresentei a palestra “Literatura de terror contra las estructuras de poder: un escalofriante ajuste de cuentas” na Faculdade de Letras de Alcalá. Eu estava um tanto nervoso por dois motivos: tratar de um tema novo e falar em outra língua, sem ter interlocutores (como aconteceu em Salamanca).
Quando vou falar em público, é normal eu ficar um pouco nervoso, por mais que já tenha me apresentado assim centenas de vezes. Sempre me atormento com as possibilidades mais aterradoras. E se me der um apagão? E se alguém se ofender com algo que eu diga? Acho até importante essa adrenalina, porque me coloca no clima.
Agora, aqui em Alcalá as ameaças eram fatos: o espanhol e a novidade, horror feminista. A apresentação foi um ensaio do artigo que estou escrevendo por aqui, sobre literatura de horror como espaço ideal para o ajuste de contas, tendo Cupim como linha mestra. Foi-se o tempo das denúncias; é hora de ir à desforra. E acho que deu certo. A palestra aconteceu na disciplina da Teresa López-Pellisa no mestrado e, pelos comentários que ela fez, minha hipótese parece sustentável (lembrando que a Teresa é referência nos estudos que relacionam literatura fantástica e feminismo).
A classe debateu um tanto depois da exposição. Falamos, por exemplo, sobre diferenças entre o horror rural espanhol e o brasileiro - enfatizei que a nossa “área rural” é muito maior do que a da Espanha, podendo acolher muito mais possibilidades. Até saí com ideias para futuras pesquisas. E acima de tudo saí aliviado. Dever cumprido!
De resto, agora tenho pouco mais de duas semanas aqui. Já começo a sentir o frisson da volta, mas ainda há trabalhos a fazer - entre outros, terminar o artigo e encerrar a organização de um livro que já já comento com você qual é.
No final de março eu volto com a última edição alcalaína da newsletter.
Um abraço e/ou um beijo, o que te convier,
Oscar
Amei o texto ❤️