TerraTreva #24 Um pouco de Domingão do Huck, um pouco de Flip
Qual é a droga e qual é a salada? Longe de mim responder. Mas meu superego teve algumas palavrinhas a dizer.
Meses atrás recebi uma mensagem do Alexander Meireles, o professor Alex do Fantasticursos. Dizia ele que uma produtora o tinha procurado porque estava em busca de um especialista em Drácula, prum trabalho inusitado: a participação em um programa da Globo. Como o Alex sabia que eu tinha ido à Transilvânia recentemente e que eu adorava o assunto, me perguntou, gentil como sempre, se poderia me indicar. Claro, respondi. Não sabia onde daria aquilo, mas podia render uma história divertida.
Logo depois, a produtora veio falar comigo. Me sondava pra participar do quadro “Acredite em quem quiser”, do Domingão do Huck — o programa que substituiu o do Faustão (descobri isso naquele momento). Funciona assim: diante de uma bancada de celebridades, três pessoas contam alguma história improvável, e duas delas estão mentindo. Os famosos precisam descobrir quem conta a verdade. No meu caso, eu teria que dizer que morava no Castelo Bran, na Transilvânia, dando um jeito de justificar isso. Provavelmente me vestiriam de vampiro. Outras duas pessoas também diriam que moravam em castelos.
A produtora perguntou se eu toparia. Ainda bem que o fez por mensagem de WhatsApp, porque pude pensar antes de responder. Aparecer na Globo era uma coisa; no programa do Luciano Huck, fantasiado, outra bem diferente. Não queimaria o filme? Não forçaria a barra? Não passaria a ideia de que estou fazendo tudo por uns minutinhos de fama? Por outro lado, não faria sentido, dado o meu trabalho? Não poderia, quem sabe, ser positivo em termos de divulgação? E não seria mesmo uma aventura doida?
Decidi topar. Mas ainda precisaria ser aprovado. Ela me pediu um vídeo no qual me apresentasse e contasse uma história — eu diria que morava no castelo porque trabalhava lá, fui contratado como guia/especialista em Drácula —, depois teríamos uma entrevista com o diretor do programa. Passei por essas etapas e fui aprovado. Estaria ao lado da Julianny, que diria que morava em um castelo no Paraná, e do Ivânio, o verdadeiro encastelado, que de fato mora no castelo que ele próprio construiu, em Cubatão (!). Agora, era só aguardar que nos chamariam pra gravação. Não sabiam ao certo quando, mas avisariam com antecedência.
Isso foi em julho, acho. Passaram agosto e setembro, e nada. Até que no dia 1o de outubro, uma terça, a produtora me perguntou se eu poderia participar do programa já no domingo seguinte. Com um detalhe: seria ao vivo (o programa do Huck costuma ser gravado às quintas). Deu frio na barriga, mas topei. Fazer o quê?
Então, na sexta à noite (04), lá fui eu pro Rio. A programação seria intensa. O sábado dedicado ao figurino e aos ensaios, e no domingo aconteceria a entrada ao vivo. Eu não sabia, mas tudo rolaria no Projac. Foi um barato passar dois dias zanzando pela nossa “Hollywood”. O complexo é o núcleo do entretenimento da Globo, e mesmo nos bastidores parece que estamos apartados do tempo e do espaço, em um lugar onde sempre é sábado.
Meus colegas de bancada eram muito simpáticos. O Ivânio, grande figura, de fato construiu um “castelo” no terreno de sua casa e é conhecido como o Rei de Cubatão. A Julianny tem uma produtora de cinema, é fanática pela Idade Média e se casou num castelo medieval com o Julio (que a acompanhou no Rio).
Escolhidos os figurinos e concluídos os ensaios, chegou o domingo. Nosso quadro seria o primeiro do programa e entraríamos logo depois de começar, às 16h05. Mas às 15h45 já estávamos posicionados nos bastidores escuros do palco super iluminado. Ficamos atrás do painel que se abriria para nós. Por uns 20 minutos permanecemos imóveis, fantasiados, cabelo e maquiagem feitos, vigiados pelos produtores, que repassavam com a gente trechos das nossas falas. À nossa frente, algum Velozes e furiosos passava numa telinha, na Temperatura Máxima, com uma contagem regressiva num temporizador. Atrás do painel, no palco, ouvíamos o Luciano Huck falando com a plateia e com a bancada de famosos. Todo mundo soltando vários palavrões, já que ao vivo era proibido.
Chegou a hora. Contrarregras empurraram o painel no muque e lá fomos nós pra bancada, caminhando ao som de uma marcha de Haendel, acho (ideal para adentrar um castelo, na concepção do diretor).
Não é fácil dizer como me senti naquele momento. Pensei nos gladiadores ao entrarem no Coliseu: da escuridão dos porões ao sol abrasador de Roma. Os famosos da bancada também tinham algo dos leões e outros animais que espalhavam pela arena, nos olhando com uma mistura de fome e curiosidade. Certo, nem todos: alguns nos olhavam com piedade.
Me senti nervoso, claro. Mas por um breve momento meu espírito pareceu abandonar minha carcaça, e minha boca reproduziu, ipsis litteris, a ladainha decorada. Já aconteceu antes. Como falo muito em público, e como em certas situações isso me deixa nervoso, às vezes parece que minha mente se afasta, e meu corpo, como um fantoche, continua falando, mesmo esvaziado de intelecto. Demoro um pouco pra voltar, mas volto.
No caso do Huck, eu tinha que voltar rápido. Porque as celebridades fariam perguntas na hora, e teríamos que improvisar pra responder. “Você dorme de cabeça pra baixo?”; “Você tem alho ou crucifixo?”; pra essas eu estava preparado. Mas uma me pegou desprevenido: “se você entende de vampiro, pode dizer onde acharam uma ossada de vampiro recentemente?” Eu não sabia. Depois fui ler os factóides, que diziam ser na Polônia. Enfim, no final, a maioria votou no Ivânio. Acertaram.
Logo a seguir, nos apresentamos de verdade e o Huck nos despachou. No total, foram exatos 15 minutos de fama.
Passada a adrenalina, me senti dividido. Meu superego — um tanto sádico, diria minha psicanalista, e concordo com ela — chegou com tudo. Me senti ridículo, arrependido, frustrado por ter ficado mais nervoso do que gostaria, e sobretudo frustrado por não ter conseguido dar minhas redes sociais ao vivo (o Huck meio que me cortou antes disso). Por outro lado, as incontáveis mensagens que recebi, entre surpresas e elogiosas, me animaram.
Contei essa longa história por dois motivos: primeiro, porque acho que vale compartilhar os bastidores de uma aventura tão insólita. Segundo, porque o episódio prova como a nossa cabeça é mesmo um labirinto.
Pessoas que me conhecem bem já me disseram que penso demais. E nesse episódio pensei até pifar, quase. Foi exaustivo ficar debatendo comigo mesmo sobre ter valido a pena ou não. Se teria sido vergonhoso para alguém que lida com literatura ter se sujeitado a participar de um programa de massa. Também foi cansativo recorrer à impressão de pessoas próximas pra tentar me certificar de que foi proveitoso: quando se trata de mim mesmo, parece que não tenho minha própria opinião; preciso da alheia.
No final, consegui me convencer de que, sim, valeu a pena. No fundo, durante o final de semana na Globo, estive bem próximo do menino que fui, cujo sonho era fazer filmes de horror na Transilvânia (sonho de verdade: cheguei a prestar Fuvest pra cinema, mas não passei, a nota de corte era super alta). Às favas com o que pensariam os intelectuais das altas esferas literárias e acadêmicas; às favas com meu superego.
Depois, pensei em como são traiçoeiros esses movimentos internos. Como muitas vezes nos sujeitamos não ao que nos move lá no fundo, mas ao que esperam de nós. Ou melhor, nos sujeitamos àquilo que achamos ser o que esperam de nós.
Fato é que voltei do Rio na segunda-feira me sentindo bem cansado. Dois dias depois eu partiria pra Flip, em Paraty, e já pensava nas mesas de que participaria lá, no network que precisaria fazer e tudo mais. Na minha cabeça (ainda regida pelo superego), eu deveria redobrar os esforços pra compensar a presepada de ter aparecido em rede nacional fantasiado de vampirinho. Isso significava redobrar a atenção e pesar muito qualquer palavra dita. Você imagina o desgaste psíquico? Mais os trabalhos corriqueiros, e pimba: eis-me a um milímetro do esgotamento.
Eu só não contava com que a Flip fosse o oposto daquilo que andava na minha cabeça. Que fosse uma festa, de fato. Talvez o ectoplasma flanneur do João do Rio, o autor homenageado, tenha se misturado à água da cidade, e desde que cheguei a Paraty me senti leve e livre. Acho que deixei o superego em SP.
De peito aberto, fiz o que tinha de fazer. Participei de duas mesas (ambas no mesmo dia), uma sobre João do Rio e Chiquinha Gonzaga com a escritora Úrsula Antunes e mediação da Barbara Krauss, na casa da Estante Virtual; e outra sobre terror e fantasia à brasileira, com o Luiz Antonio Simas e mediação da querida Ana Rüsche, na casa Sete Selos (fácil a mesa mais cheia de que participei nas quatro Flips a que fui). Também tive conversas importantes com editores sobre projetos futuros — que estão me causando ansiedade, não nego, mas expectativa e ansiedade, assim como frustração, são indissociáveis da vida literária.
De peito aberto aproveitei a festa, boa parte dela na companhia da própria Ana e do editor Lucas de Sena. Com eles flanei pela cidade, ancorando ora numa casa, ora num bar, ora num forró, ora numa concorrida festa de editora, ora até na mesa do Felipe Neto (ele se saiu até que bem). Também encontrei amigos e leitores, o que sempre nos anima.
No geral, compartilho da impressão da Ana Rüsche: as ruas de Paraty pareciam mais vazias, e as casas da programação paralela, mais cheias. Parece que o evento está se redesenhando, pra quem sabe diminuir depois de ter crescido muito. Ainda assim, a Flip preserva o espírito de jogos universitários. Um Juca turbinado, com tíquete médio e faixa etária bem maiores. Só lamento não ter visto a conversa entre o Mohamed Mbougar Sarr (autor do melhor livro que li em 2022, A mais recôndita memória dos homens) e o Jeferson Tenório. Era a única mesa da programação principal pra qual tinha comprado ingresso, mas a ressaca me impediu.
Mesmo com ressaca, dirigi de volta pra SP — e pros braços de my girl Zaia, de quem estava morrendo de saudade. Cheguei bem mais leve do que imaginava. De uma forma ou de outra, minha profissão me levou a duas viagens em tudo opostas entre si; e no final das contas, pesando tudo, consegui extrair o melhor delas, apesar dos confrontos internos. Não sei bem que conclusão tirar disso. Mas sei que há momentos em que precisamos mesmo amordaçar o superego.
Obrigado por ler até aqui! No comecinho de novembro eu volto, celebrando um ano de newsletter.
Um abraço,
Oscar
Que lindo relato! A ruminação é real. E que bom que a festa nos salve 🌟
Adorei. Deu até vontade de me vestirem de uma coisa qualquer e me colocarem no programa do Luciano Huck, juro!