TerraTreva#28 Me encontrei na Estrada perdida
Na primeira edição do ano, minha despedida particular de David Lynch e uma exaltação à liberdade e à arte que mais pergunta do que responde
Domingo passado revi A estrada perdida (1997). Foi uma forma de celebrar David Lynch, que morreu neste mês. Aliás, alguém muito perspicaz apontou um fato estranho e mórbido: assim como David Bowie se foi em 2016 pouco antes de o Trump assumir a presidência dos EUA, Lynch faleceu da mesma forma, alguns dias antes de o brucutu começar o segundo mandato. Coincidência ou não, é difícil não interpretar isso como um presságio sinistro dos anos que virão (assim como os que vieram depois de 2016).
Mas o que não tem remédio, remediado está. Resta a arte. Adoro A estrada perdida desde os 16 anos, quando o vi pela primeira vez, e o revi algumas vezes nos anos seguintes. A trilha sonora foi um divisor de águas pra mim e pra muita gente, tenho certeza. Mas fazia tempo que não reencontrava o filme. Ao revê-lo nesta fase da vida e em especial num domingo (que em sumério quer dizer “dia da melancolia”), cheguei a algumas conclusões que gostaria de compartilhar com você.
Antes, uma rápida sinopse pro caso de você não ter visto (o que recomendo fazer o quanto antes). A estrada perdida é um filme sobre queda, ou quedas. É a história de um saxofonista, Fred (Bill Pullmann), que desconfia da esposa Renee (Patricia Arquette) e que por conta disso vai à ruína. Em certo momento do filme, preso após ser acusado de matar Renee, ele se transforma em outro cara, Pete (Balthazar Getty), um mecânico que, ao conhecer uma loiraça, Alice (Particia Arquette de novo), também sucumbe. Em torno disso, há personagens bizarros, como o “mystery man” (Robert Blake) e um tipo meio mafioso, mr. Eddy/Dick Laurent (Robert Loggia), além de um subtexto de decadência representado pelo cinema pornô. Por todos os lados, as pistas falsas, as portas para lugar nenhum e aquela atmosfera de mistério e absurdo como só o Lynch sabia realizar.
Dito isso, às conclusões de domingo. A primeira é que hoje entendo que esse filme meio que simbolizou a minha entrada na vida adulta. Na época, eu estava no penúltimo ano do ensino médio e vivia meu primeiro relacionamento. Era um típico namoro adolescente, bonito e ingênuo, mas meu funcionamento interno já não era exatamente tão chófen. Sobre o filme, eu achava fascinante aquela perturbação pela qual o Fred e o Pete passam, sem muito lastro na realidade além de breves indícios de suas companheiras. Me atraía a ideia de desabar em mim mesmo, de sucumbir ante meus próprios demônios. Então, eu ficava fantasiando coisas que minha namorada na época pudesse estar fazendo por aí, no sigilo, só pra me torturar — e nesse caso nem indícios havia. Não tinha nada mesmo, nossa relação foi saudável do começo ao suave fim, logo depois de entrarmos na faculdade.
Hoje entendo que estava lidando com movimentos bem violentos do meu desejo. A ideia de flagrar uma companheira com outra pessoa, em uma situação “sórdida”, ao mesmo tempo me assustava e instigava. Descobrir que ela levava uma vida dupla me enchia de pavor e excitação. Acho que abraçar essa complexidade de sentimentos e sensações, ter consciência dessa tensão entre repelir e atrair uma ideia ou uma imagem — tão brilhantemente trabalhada no filme do Lynch —, é sim um sinal de que deixamos pra trás as convulsões da adolescência, e que nos entendemos de uma maneira mais ampla.
Claro que só fui me dar conta disso muito tempo depois. Por anos e anos, pensando em situações parecidas com as que descrevi, o medo prevaleceu — e um medo profundo, que tinha a ver com o desprezo e a inexistência. Claro, pois eu era cria de meu estrato social monogâmico e relativamente conservador. Imaginar alguma parceira minha com outra pessoa, vivendo o êxtase sexual, equivalia a me imaginar de início insuficiente, depois inexistente, nulo.
Por outro lado, o pensamento não deixou de me excitar. Mas desde que — ficou evidente pra mim — a coisa acontecesse às claras, sem sigilo. Desde que quem estivesse comigo soubesse que eu sabia das aventuras. Desde que essa aventuras estivessem dentro dos termos de um relacionamento, amparadas por muita conversa, paciência e compreensão. Aqui, sei que entro no território da não monogamia: não avançarei nele agora, quem sabe num momento futuro. Só adianto que numa mulher maravilhosa chamada Julia Mazaia (de quem já falei aqui e voltarei a falar), encontrei a parceira ideal pra viver toda a dimensão desses sentimentos tão complexos. Graças a ela, nunca estive tão por inteiro num relacionamento. Também por isso a amo.
Pois bem: o filme de Lynch me despertou para aspectos subterrâneos de mim mesmo. Junto com outras obras que eu consumia, me pegou pela mão e me levou à idade adulta. Me lembro de ouvir sem parar o disco com a trilha sonora nas longas viagens que separavam a casa onde eu morava, na zona oeste de SP, do colégio em que estudava ou da casa da minha namorada na época, ambos na zona sul. As músicas me transportavam imediatamente praquele universo estranho, excitante, perturbador.
Aliás, valem algumas palavras sobre a trilha. Foi produzida pelo Trent Reznor e na época eu já era doido por Nine Inch Nails. Por causa dela descobri (literalmente) Rammstein e me aprofundei em Marilyn Manson, que havia lançado o disco Antichrist superstar um ano antes, em 1996, e foi uma febre por aqui. Minha mãe também adorava ambos, filme e trilha, que ouvíamos juntos com frequência nos “aparelhos” lá de casa. Ela sofria da doença de Crohn e na época já não estava muito bem. Como não podia ficar longe de casa pois ia muito ao banheiro, passava boa parte do dia num escritório que tínhamos lá, jogando paciência no computador. Eu ficava com ela, ouvindo música e conversando. Ambos nos obcecamos pelo MM e em agosto de 1998 fomos juntos ao show que ele fez no finado Olympia, na Lapa (SP). Com a gente foi Marcelo, amigo meu do colégio, vulgo Beterraba (os apelidos da época…)
Divago. A questão é que o filme representou mesmo uma ruptura porque, alguns meses depois de assistir a ele e de curti-lo muito com minha mãe, meu pai (médico) chamou a mim e à minha irmã pruma conversa no consultório dele. Sem rodeios, disse que a doença de nossa mãe tinha se convertido em câncer, com metástase. E que ela teria no máximo seis meses de vida. Sim, a vida adulta havia chegado mesmo. Eu tinha 17 anos. Minha mãe faleceu algum tempo depois, em agosto de 1999.
Todas essas lembranças me atingiram com força no domingo passado.
Também me lembrei de que, quando vi A estrada perdida pela primeira vez, ficou mais claro pra mim que eu me realizaria criando. Nova conclusão: naqueles tempos, sem saber, eu tomava algumas decisões de ordem estética. Adoraria poder reproduzir em alguma história o clima de perturbação e absurdo que havia encontrado no longa do Lynch. Em especial o caráter austero e pesaroso da narrativa. Também me fascinou sairmos do filme com tantas perguntas, mas de maneira a expandir nosso interesse por aquele universo, e não nos afastarmos dele. Não por acaso, anos depois encontrei imenso prazer na leitura de um autor que, a meu ver, compartilha de várias características do David Lynch, o britânico Robert Aickman, que tive a honra de traduzir.
E vejam, estamos falando de um filme, mas um filme que mais pergunta do que responde. É um universo que nunca se fecha, nunca se permite encerrar. Seguiu vivíssimo no domingo passado, despertando em mim novos e velhos sentimentos. É fácil reconhecer a grandeza desse trabalho artístico, é fácil reconhecer a genialidade que o concebeu.
Encerro esta edição com um convite: hoje (21/01) começa minha nova oficina no Astrolábio, desta vez focalizando a literatura fantástica, que será meu objeto de pesquisa no pós-doutorado que realizarei neste ano. Serão quatro encontros online, sempre às terças, das 19h às 21h. A primeira aula, hoje, será aberta. Você pode se inscrever por aqui.
Um abraço e até já já,
Oscar
Senti a perda de Lynch principalmente pelo impacto de Estrada perdida e Blue Velvet além de ter acompanhado com ansiedade Twin Peks
Blue Velvet foi para mim um misto de mistério e sexualidade extrema, até hoje canto a música principal
Cara, belo texto!
Também senti o coice da perda do Lynch. No domingo fiz quase como você, mas decidi assistir o primeiro episódio de "Twin Peaks", que eu adoro.
"Lost highway" é um dos meus favoritos dele, um filmaço denso, provocador, assustador. Me marcou bastante. Patricia Arquette está no auge da beleza nele. É uma obra hipnótica, como quase tudo que o Lynch fez. Sinto que ele foi determinante para mim na construção do meu gosto por obras que não se propõem a ser auto-explicativas, que não tentam ser de fácil consumo ou que não se interessam pelas estruturas básicas. Obras que buscam não uma transcendência idealista, mas sim uma continuidade, uma sobrevivência desenvolvidas nas sinapses cerebrais, na imaginação que parece que se amplia cada vez que seus filmes são assistidos.