TerraTreva #7 Solidão x Solitude
Nesta edição, falo da glória e das dores de passar meses voluntariamente sozinho. Prometo um conteúdo coaching-free!
Um dia antes de eu vir pra Espanha, a Taina sugeriu que eu tirasse uma carta de um baralho de tarô que ela tem em casa. Ela não faz tiragens nem nada do tipo, foi só pela curiosidade. Topei. Que mal havia? No geral sou cético, mas deixo sempre uma frestinha aberta pra tudo que possa entrar e nos contar um pouco mais sobre nós e a nossa vida. Vale o mesmo pro horóscopo, passei a me entender melhor à medida que fui me informando sobre meu signo (sagitário) e meu ascendente (aquário).
Tirei a carta. Não lembro qual era, mas a descrição do verso me marcou. Dizia bastante coisa, mas, resumindo, era algo como “você terá uma jornada muito profunda consigo mesmo, de busca, espanto e descoberta”. Não sei se assim tão lírica, mas era por aí. Por conta daquela frestinha, fiquei um pouco inquieto. O que isso queria dizer? Seria muito sofrido? Eu ficaria desesperado? Entraria em crise e encurtaria a estadia de quase seis meses?
No dia seguinte, a Taina me deixou no aeroporto e, ao me despedir dela, me lembro da cena como se tivesse acontecido agora mesmo, e não quatro meses atrás: num impulso, saí do carro, peguei a mala no porta-malas, abracei a Tata e me fui. Num único movimento decidido. Da sensação também me lembro bem: estoicismo. “Preciso fazer isso”, eu pensava, sem dar qualquer espaço a sentimentalismo, enquanto passava pelo check-in e ia pro portão de embarque. Mas a descrição do tarô continuava na minha cabeça, bem lá no fundo.
“Que c****** tô fazendo?”
A verdade é que eu não tinha a menor ideia do que me aguardava na Espanha. Mesmo as informações objetivas não eram muitas. Eu vinha pra Universidade de Alcalá de Henares estudar com o David Roas e a Teresa Lópes-Pelliza, pesquisar sobre contos de uma autora brasileira em diálogo com uma mexicana. Tinha algumas viagens marcadas e duas semanas reservadas em um quarto de uma residência universitária. E meio que só.
Por outro lado, minhas semanas antes de embarcar haviam sido tumultuadas, pra dizer o mínimo. Os meses, na verdade; e você me permita uma digressão sentimental (juro que tem a ver com o tema dessa edição).
Já comentei por aqui que meu relacionamento com a Taina havia acabado fazia um tempo e que no lugar tinha surgido outro, de amizade e profunda familiaridade.
Antes de viajar, eu tava em paz em relação a tudo isso, mas sentia que precisava da distância pra processar os acontecimentos, as mudanças. Precisava sair da ilha pra ver a ilha, como ensinou Saramago. E eu programava uma contemplação silenciosa, pacata.
“Quer fazer Deus rir?”
Acontece que, também antes de viajar, eu me apaixonei violentamente. Pela Julia, mais conhecida como Zaia. Nós estamos em um grupo de whatsapp sobre relacionamento aberto e não monogamia e, durante uma conversa, o assunto enveredou pra literatura. Me chamou a atenção que ela lia pra caramba e começamos a conversar no privado. Dos livros, fomos aos flertes e logo marcamos um café na tarde do domingo, 22 de outubro. UMA, repito, UMA SEMANA antes do meu embarque.
Pois o café que começou às 16h do domingo terminou às 11h da segunda-feira. E eu pelo menos me despedi dela sob o efeito pesado do phármakon, aqui sem qualquer traço de veneno. Era puro encantamento, puro delírio.
Então eu tava lascado. Como diz aquela sábia frase: “Quer fazer Deus rir? Conte seus planos pra ele”. Eu trocaria Deus pelo universo, mas dá na mesma. Tentei me ludibriar dizendo que não conseguiria mais vê-la antes de viajar, por causa da agenda, e tal. Ledo engano: nos dias que antecederam a partida, nos vimos mais duas vezes. Inclusive a convidei pra despedida que organizei no bar de um grande amigo. E, pra minha alegria frenética, ela topou ir.
Fim da digressão sentimental.
Mortificação no Beach Park
Você deve ter uma ideia de como estava o meu universo íntimo no momento de embarcar. Nem sei como empurrei tudo isso pro lado no fim de outubro, quando vim. Busco na memória alguma experiência parecida e só encontro uma: muitos anos atrás, quando fui ao Beach Park, em Fortaleza, me meti a ir no Insano, um tobogã reto de 41 metros de altura – e tenho pavor, PAVOR de altura. Na hora de me enfiar na plataforminha, deitar e cruzar os braços sobre o peito como um defunto, o medo veio feroz, mas dei um jeito de não pensar em nada e me lancei. Cheguei vivo ao chão, mortificado, mas em êxtase.
Agora, depois de quase quatro meses na Espanha, penso que foi algo parecido o que fiz. Acho que a cabeça, nessas horas, se defende, se protege. Se eu pensasse em tudo o que tava acontecendo fora e dentro de mim, talvez ficasse paralisado e perdesse o voo.
Passado esse tempo, pude enfim pensar em tudo. Pude ver, ou tenho visto, a ilha a partir de todos os ângulos. Só consegui fazer isso porque minha cabeça também trabalhou nesse sentido, ativou mecanismos pra me manter focado. Nos estudos, nas aulas, nas viagens, nos trabalhos que trouxe pra cá e em mim mesmo. Sobrou bem pouco espaço pra outras pessoas além dos meus supervisores e alguns colegas na universidade.
O que quero dizer é que passei os últimos meses basicamente sozinho, mas de uma forma que me vem me preenchendo como jamais imaginei. Olho pra trás e percebo o tanto que vivi e o tanto que pensei porque estive sozinho. Claro, tenho todos os meus amigos e amigas no Brasil com quem compartilhar notícias, tenho a Zaia (que virou minha namorada!), a Taina, a minha irmã; mas minha presença por aqui tem sido solitária — e porque quero.
Não concordo com o Sabbath
Então chego ao ponto que gostaria de abordar nesta edição: a solitude versus a solidão. Tive até que ressignificar o termo “solitude”, pois eu sempre pensava na música do Black Sabbath que leva esse título:
My name, it means nothing, my fortune is less
My future is shrouded in dark wilderness
Sunshine is far away, clouds linger on
Everything I possessed, now they are gone
They are gone, they are gone
(Em tradução livre:
Meu nome não significa nada, meu destino, menos ainda
Meu futuro está disperso em uma vastidão sinistra
A aurora está distante, as nuvens persistem
Todos que eu possuía se foram
Eles se foram, eles se foram)
Tristíssimo, né? E bem diferente do que sinto por aqui. Sim, muito do que eu possuía se foi, de certa forma. Sofri demais por isso tempos atrás, mas a vida é impermanência e outras coisas surgiram. Sempre surgem. Me parece que o Tony Iommi, o Ozzy e o Bill Ward, quando compuseram a música, tinham mais a solidão em mente, ou loneliness. O estar involuntariamente sozinho, o sentir falta de algo ou de alguém que jamais voltará.
Quanto à solitude, debati o termo com minha psicanalista (em sessões online, indispensáveis pra cachirola seguir funcionando bem). Na psicologia e em geral, o termo significa uma solidão voluntária, autossuficiente. Li em algum lugar que quer dizer “a glória de se estar sozinho” e achei bonito. Acho que tem, sim, algo de glorioso conseguirmos passar tanto tempo longe de quem nos conhece e nos completa.
Desde o primeiro dia em Alcalá de Henares, percebi que tenho preferido estar sozinho porque nada me parece melhor do que a minha liberdade de ir pra onde eu quiser ou de comer no restaurante que preferir. Nada me parece melhor do que passar boa parte da noite lendo os livros maravilhosos que, salvo exceções, têm caído na minha mão; ou assistindo a um filme ou a uma série (True Detective - Night Country, no caso) sozinho ou com a Zaia – sincronizamos na hora de dar play. Enfim, nada me parece melhor do que ter esse espaço e esse tempo só pra mim, pra colocar todos os pensamentos em ordem, pra entender em qual momento profissional estou e quais os próximos passos a dar.
Um tempo fora do nosso país e da nossa casa não deixa de ser um tempo fora da vida, pelo menos como a conhecemos até então. Aqui, estou em suspensão; mas também não vejo minha estadia como um período sabático porque sigo trabalhando (viu, tia Domingas? Vá se acalmando).
Agora, a minha solitude só é gloriosa porque ela tem data pra acabar. Morro de saudade das pessoas amadas, da minha cachorrinha Lori e de muita coisa no Brasil, mas sei que vou encontrar tudo isso quando voltar. E essa certeza me basta, me abastece pra seguir a jornada por aqui.
Claro, a solidão voluntária tem seus pontos negativos. A saudade do contato físico (incluindo o sexual), não poder compartilhar no tête-à-tête as coisas incríveis que vivo por aqui, o fato de entrar sozinho em um restaurante e pensar que todo mundo me acha um pedófilo ou um esquisitão (coisa da minha cabeça, estou trabalhando na terapia, rs), enfim. São, porém, contrapontos com os quais consigo viver numa boa.
Tudo isso pode parecer um tanto egoísta, eu sei. Mas compartilho contigo pra dizer que, num mundo tão cheio e tão barulhento, esse tipo de isolamento auto infligido pode esclarecer muita coisa. O próprio mundo ganha mais nitidez. Vendo-o com mais clareza, conseguimos nos movimentar melhor por ele, sem bater a cabeça num velho problema ou meter o dedinho do pé naquele relacionamento que não funciona mais. E nem precisamos viajar 10 mil km pra isso… Acho que a carta de tarô foi profética. É hora de abrir mais aquela fresta.
News from Alcalá
No mais, tudo em paz em Alcalá de Henares. As aulas do Roas e da López-Pellisa começaram – ele está dando a disciplina de literatura comparada na graduação, e ela, de literatura, sociedade e poder, na pós (mestrado).
Estou assistindo a ambas como ouvinte, quando dá, e tem sido maravilhoso revisitar alguns conceitos, no caso do Roas, e conhecer outros, no da López-Pellisa, pois a disciplina dela é ancorada nos estudos culturais e tenho bem pouca leitura disso. Tratamos muito de estruturas de poder e feminismo, por exemplo.
Na disciplina dela darei uma conferência no dia 14 de março, intitulada Literatura de terror contra las estructuras de poder: un escalofriante ajuste de cuentas (Literatura de Terror contra as estruturas de poder: um arrepiante ajuste de contas). Tô bem nervoso desde já, te confesso.
Pra além disso, semana que vem farei uma viagem pela Galícia, no noroeste da Espanha, com minha prima Patrícia e o Fuad, marido dela, que chegaram há alguns dias em Madri. Será maravilhoso poder passar esses dias com eles. Porque, sim, tenho achado glorioso estar sozinho; mas, voltando à metáforas insulares, o poeta inglês John Donne também tinha razão: nenhum ser humano é uma ilha, e eu menos ainda.
Obrigado por ler até aqui! No comecinho de março estou de volta (com a newsletter — pro Brasil ainda demora um pouco mais).
Um beijo ou um abraço, o que te convier,
Oscar
Ótimo texto meu amigo, a coragem de um coração aberto, seja na literatura, seja na vida!
Maravilhoso como sempre
Aqui muitas saudades suas e contente por Você estar feliz
Te amo muito e bjos no coração da sua boatrasta que te admira muito