TerraTreva#15 Por que não morro de amores por Stephen King?
Nesta edição, meu reencontro com o rei do horror e os motivos pelos quais questiono tal título de nobreza (embora o considere um baita prosador)
Na semana passada recebi Mais sombrio, o novo livro de contos do Stephen King, publicado aqui pela Suma. São doze histórias, das quais só cinco são inéditas. E a maioria foi escrita de 2020 pra cá.
Comecei a ler o livro assim que chegou, porque vou escrever sobre ele na minha coluna da revista Galileu. E enquanto o lia, fui pensando na minha relação com o homem. É de longa data, como costuma acontecer com quem ama o gênero: li muitos livros do King ali no coração da adolescência. Boa parte deles era da coleção “Mestres do horror e da fantasia”, da Francisco Alves. A maldição do cigano, A metade negra, Os estranhos, O cemitério e Trocas macabras, entre outros, passaram diante de meus jovens olhos e deixaram suas marcas em meu inocente coração. Em especial O cemitério, que considero uma obra-prima.
Acontece que, por algum motivo, os anos passaram e deixei o King de lado. Salvo algumas exceções, como Jogo perigoso e Rose Madder (que não terminei), fui perdendo o fio da meada do homem. O longo fio da meada, porque é muito livro. Enveredei pra outras searas – por exemplo, segui o conselho do próprio King e fui ler “o [então] futuro do horror”, Clive Barker, por cujos livros me apaixonei. Também fui explorar os subúrbios do Lovecraft, já na época uma obsessão minha. Fui atrás dos autores que de alguma forma se relacionavam a ele: Machen, Chambers, Hodgson, Blackwood e Dunsany passaram a povoar minha imaginação.
Ainda que eu não soubesse disso, naquela época, o meu gosto – e o meu projeto estético inicial, por assim dizer, – estava se consolidando. Agora, retomando o contato com o King, entendo porque não havia tanto lugar pras histórias dele nesse arranjo. Antes que você vocifere e exija minha excomunhão, reforço que me refiro ao horror, ao que entendo pelo gênero, com suas especificidades, seus estruturantes e principalmente seu tom (voltarei a isso mais adiante).
No âmbito da criação literária, considero o King um prosador de primeira grandeza. A narração dele é magnética e me impressiona como ele consegue, muito rápido, nos colocar bem no centro dos universos ficcionais que cria. Bastam alguns parágrafos iniciais pra que nos vejamos exatamente onde ele quer que estejamos – quase sempre em algum lugar do Maine. Poucos parágrafos depois, já nos sentimos íntimos de seus narradores, na maioria das vezes intradiegéticos – ou seja, personagens que participam dos enredos, ou os protagonizam. É como se nós os conhecêssemos há tempos, reencontrando-os naquela determinada ocasião para ouvir seus causos. Isso é um trunfo.
Prosa afiada, mas de dois gumes
Acontece que, pra estabelecer esse vínculo com o leitor e a leitora, King recorre muitas vezes à técnica de small talk, ou de conversa fiada, mesmo. Sempre há piadinhas, expressões idiomáticas e uma atenção aos detalhes que pode parecer excessiva, mas que tem o propósito de nos envolver. Como talentoso conversador, ele sabe que a ficção literária também é feita das sobras de nossas vivências, e não só do que constitui de fato essas vivências.
Por exemplo: ao narrar a obsessão de uma mulher por seu escritor preferido, King vai nos encher de informações sobre a vida miúda dela. O que ela come, ao que assiste na TV, como é a estampa de suas cortinas, qual a sua estação do ano preferida. Acontece o mesmo quando ele nos conta sobre crianças e depois adultos que lidam com monstros da infância. A narração é repleta de minúcias que, no conjunto, insuflam mais vida e verdade às personagens, o que ele faz como poucos e poucas. Annie Wilkes (de Misery), Jack Torrance (de O iluminado) ou os protagonistas de It que o digam.
A questão, pra mim, é que essa técnica costuma dispersar o efeito do horror. Me refiro ao tom geral da narração. Quando penso em meus autores e autoras preferidos, percebo que eles compartilham de uma sisudez, de uma gravidade na prosa que acentua a sensação de catástrofe iminente, indispensável ao relato assustador. O King também trabalha isso, que fique claro: mas seus personagens parecem caminhar sorrindo pros braços do monstro ou da morte; vão na cadência do sarcasmo. Seus narradores não costumam resistir à tentação do alívio cômico, da brincadeira – que, sobretudo no horror, tem hora e lugar. Pra mim, por mais contraditório que pareça, isso tira um pouco a graça da coisa.
Há muita história pra além da história de fato
Senti isso em alguns dos livros que li na adolescência e voltei a sentir agora em narrativas de Mais sombrio. Por exemplo, o primeiro conto, na verdade uma noveleta: “Dois fio da mãe sortudos”. É a história de dois amigos, um escritor e um artista plástico, que se tornaram famosos relativamente tarde, aos quarenta e tantos anos. É uma história de pacto com elementos de ficção científica. E é contada pelo filho de um dos pactários, o que permite ao King esticar bastante a corda. Há muitos preâmbulos e desvios, muitos detalhes, e o que interessa só aparece depois de umas quarenta páginas. O protagonista, o escritor, é uma figura super sarcástica, então a dispersão se dá por aí, também.
Outro relato que padece disso é a novela “Cascavéis”, sequência do romance Cujo. Na história, Vic Trenton vai passar uma temporada na casa de um amigo na Flórida, durante a pandemia de covid. Ele está de luto pela morte da esposa, Donna (protagonista do romance de 1981), e é assombrado por fantasmas do passado. Aqui, a dispersão é pesada. Entre piadas, sacadinhas, detalhes e desvios da rota principal, a história me pareceu interminável. As 100 páginas de extensão se multiplicaram por dois ou três.
Não por acaso os contos de que mais gostei foram os mais curtos. Ou seja, sem espaço pra invenção ou tergiversações. Por exemplo, “O quinto passo”: um sujeito aposentado lê seu jornal no banco de um parque e é abordado por um homem com um estranho pedido relacionado à sua recuperação do alcoolismo. Nove páginas que progridem lindamente e trazem um desfecho impressionante.
Ou “Willie esquisitão”, meu preferido, em que um moleque sinistro acompanha o avô mais sinistro ainda no leito de morte. Onze páginas de: narração em terceira pessoa atenta aos fatos que importam, personagens repulsivos, atmosfera inquietante, lacunas bem arquitetadas no enredo. O resultado, pra mim, é um grande êxito.
Horror mais inofensivo
Esses contos são, infelizmente, exceções. Predomina no livro a rarefação do horror – cuja concepção, aliás, me pareceu menos perturbadora do que os livros mais antigos do King. Talvez a idade o tenha abrandado. O horror imaginado pelo mestre do horror, hoje, parece mais suave, mais inofensivo do que aquele de O cemitério, esse sim uma porrada bem dada. Os perigos de Mais sombrio não vazam do livro pra vida; são circunstanciais, antissépticos. Meu amigo Marcelo Miranda, que é crítico de cinema e jornalista, concebeu uma expressão certeira pro tipo de obra que, ao se propor a assustar, não vai muito além da superfície: terror de shopping.
Agora, acho importante destacar: não me arrependo de ter lido a nova coletânea do King. Porque a faca da escrita dele, neste caso, tem dois gumes: se por um lado dispersa o horror, por outro nos mantém envolvidos, sempre à espera da próxima frase e da próxima página. É um mérito e tanto dar a impressão de que lemos uma boa história quando, ao pararmos pra pensar sobre ela, descobrimos que não foi bem assim.
Aliás, já que o assunto é coletânea, no momento em que você recebeu esta edição estarei participando de uma conversa com a coreana Bora Chung, de Coelho maldito. Será na FFLCH-USP e parece que depois o papo ficará disponível na internet. Se assim for, compartilho o link contigo.
E agora em junho também teremos lançamento de livro. No dia 21, sexta, celebraremos a vinda ao mundo de As artes do mal - Textos seminais, a edição ampliada e revista de uma coleção de textos clássicos sobre horror, gótico, grotesco, narrativas de crime etc que estava esgotada desde 2020. Participei da organização do novo volume ao lado do Júlio França e do Claudio Zanini, e estarei no RJ pro lançamento, que acontecerá na Acaso Cultural (que também é a editora), em Botafogo. Se você estiver pela área, te convido a vir celebrar com a gente:
Com isso me despeço, esperando seus comentários ou, caso você seja um ou uma fã intransigente do King, suas pedradas: até daqui a duas semanas!
Palavras certeiras sobre o King pensando a literatura dele, sem desconsiderar sua importância cultural. Muito bom, Oscar.
Sou doida pelo King justamente pelo que você pontuou: o magnetismo da escrita dele é absolutamente inegável. Mas a fórmula que ele segue em tooooda obra me cansa com frequência. Gosto demais do cara, mas frequentemente preciso de uma boa pausa dele pra conseguir me interessar de novo.