TerraTreva#29 Uma palavrinha sobre Tênebra e sobre amizade
Eis aí dois assuntos de que me orgulho demais
Esta é uma semana importante. Na última terça, 4 de fevereiro, chegamos à marca de 200 obras publicadas em Tênebra, a nossa biblioteca digital de narrativas brasileiras obscuras. Duzentas! É muito texto. Depois me ocorreu que mal falei ou falo de Tênebra por aqui, então decidi compartilhar com você os arredores de um projeto que me enche de alegria. E uma coisa foi levando à outra: à medida que eu ia pensando nesta edição, compreendia que falar de Tênebra também é falar de amizade, de parceria, no sentido mais profundo desses termos.
Antes, peço sua licença pra uma recapitulação. Em meados de 2018, recebi uma notificação do messenger do Facebook. Era uma mensagem do Júlio França — um cara que imagino que você, caso pesquise literatura gótica ou se interesse pelo assunto, deva conhecer. O Júlio é uma referência indiscutível no ramo. Desde meados dos anos 2010, ele debasta o matagal em torno de obras esquecidas da nossa literatura; contos, novelas e romances de horror, góticos e de outras expressões sinistras. Com a ajuda de orientandos e outros pesquisadores, o Júlio foi iluminando um passado que nós sequer sabíamos que existia. Por meio de um blog, Sobre o medo, de publicações e de eventos acadêmicos, ele e seus asseclas divulgavam os achados para uma comunidade de leitores cada vez mais espantados e maravilhados.
Em 2018, eu me encontrava entre esses leitores. Tinha concluído o mestrado fazia um ano, pesquisando o fantástico em Poe e Mário de Sá-Carneiro, e me preparava pra começar o doutorado, no qual me concentraria no horror. Por isso, já era um visitante assíduo do Sobre o medo, onde o Júlio publicava artigos e textos críticos sobre narrativas do século 19 que eu mal conhecia. Já o respeitava e admirava, mesmo sem nunca ter conversado com ele.
Voltando à mensagem no Facebook: era o próprio Júlio, me convidando pra dar uma conferência em um evento na UERJ (onde ele leciona) chamado Vertentes do Insólito Ficcional. Convite mesmo, como hoje é raro no meio acadêmico: todas as despesas pagas, coisa e tal. O evento seria organizado por ele, pelo Flavio García (sumidade nos estudos sobre o fantástico e o insólito por aqui) e pelo grupo de pesquisa Vertentes do Insólito Ficcional. Para as conferências, me explicou o Júlio, eles estavam chamando pesquisadores que também fossem escritores — eu tinha publicado a primeira edição de Bile negra fazia poucos meses, e dois anos antes, a antologia Horror adentro. Além de mim, estariam no evento o Roberto de Sousa Causo, o Eneias Tavares, o David Roas, entre outros e outras.
Me tremendo todo, aceitei, é claro. Uma oportunidade imperdível para o pequeno gafanhoto que eu era. Já perambulava por eventos acadêmicos e do mercado editorial, mas ali estaria entre gigantes. Num momento futuro falarei de como foi aterrorizante apresentar uma conferência para uma plateia na qual estavam os e as responsáveis por toda, repito, toda
a bibliografia do que eu pesquisava na época. Será uma edição da newsletter dedicada ao stage fright, o pânico do palco. Mas adianto que, no final, deu tudo certo na UERJ. Morri mas passei bem.
O que importa é que lá finalmente conheci o Júlio. E eu não fazia ideia, mas ali começava a nossa amizade. Na real não exatamente ali; tinha sempre muita gente, tanto no evento quanto nos eventos em torno do evento (almoços, jantares, idas ao bar etc). Nos aproximamos mais em outra viagem acadêmica, que aconteceu pouco depois. A convite (mais um comme il faut) do Eneias Tavares, fomos à Federal de Santa Maria (RS) para alguns dias de debate sobre fantástico, insólito e adjacências. Nos hospedamos em Silveira Martins, uma cidadezinha minúscula e adorável, em um antigo convento que foi transformado em campus da UFSM.
Nas atividades extracurriculares, estiveram visitas a casas abandonadas da região e cozinhar pro grupo que se reunia lá. Lembro de certa noite eu e o Júlio prepararmos um molho de tomate caprichado pros cachorros quentes que o pessoal comeria. Entre perambular por escombros de residências coloniais e cortar tomates e cebolas, fomos conversando aos pouquinhos, trocando ideias sobre livros, filmes, vivências. Aquela dança desajeitada entre dois caras tímidos, um pouco desconfiados, que percebem a afinidade e a simpatia mútuas, mas a quem falta jeito de caminhar mais decisivamente na direção um do outro.
Em todo caso, nos aproximamos. Algum tempo depois de Santa Maria, já em plena pandemia, veio outro convite do Júlio — e outro convite extraordinário. Ele me explicou que tinha um acervo com centenas de obras brasileiras coletadas ao longo dos anos de pesquisa, todas em domínio público, e que pensava em oferecê-las ao público geral, por meio de um site. Precisava de ajuda pra fazer isso acontecer. Começamos a conversar, a nos reunir, a planejar, montamos uma equipe e, em outubro de 2021, foi ao ar a nossa querida Tênebra - Biblioteca digital de narrativas obscuras brasileiras. E exatamente um ano depois, no Halloween de 2022, saiu o livro com 27 contos publicado pela Fósforo.
Hoje, não tenho dúvida de que Tênebra é um dos trabalhos mais importantes que realizei ou realizarei. Não só pelo que representa — tornar público e acessível um riquíssimo catálogo de obras, das quais boa parte estava condenada ao esquecimento. Mas também porque foi graças ao projeto que aprendi a sistematizar o garimpo de obras soterradas pelo tempo. Trabalhando lado a lado com o Júlio e o Daniel Augusto, também professor da UERJ e outro colosso do ramo, entendi como organizar a pesquisa em hemerotecas e bibliotecas no geral. Como conduzir o trabalho de uma equipe, centralizar as informações em planilhas, organizar e refinar os arquivos encontrados, transcrevê-los, e por aí vai.
Minha atuação acadêmica, até então, era bem centrada na teoria e em análises, em literatura comparada. Nunca tinha me entregado pra valer a esse trabalho por assim dizer “braçal”, de arqueologia, e hoje adoro fazê-lo. Tem um caráter detetivesco que é muito empolgante. Nesse esquema de vasculhar hemerotecas, já reviramos várias centenas de números de revistas do final do século 19 e primeira metade do 20, sempre em busca de narrativas que se encaixassem em Tênebra. Nas leituras transversais, nosso olhar cultivado nas sombras se deleita quando aparece um título sinistro, uma expressão macabra no corpo do texto.
O trabalho mais recente rolou na Fon-fon, revista carioca semanal que circulou entre 1907 e 1958. Durante o final de 2023 e ao longo de 24, toda a equipe de Tênebra se debruçou nisso. A divisão era simples: duas pessoas cuidavam de cada ano. Por exemplo, em 1917, eu ficaria com as edições de janeiro a junho, enquanto o Júlio se ocuparia dos números de julho a dezembro. Tudo que encontrássemos iria para uma tabela com ano, autor/a, sinopse, palavras-chave. Em reuniões mensais, debatíamos os achados e refinávamos os processos. O trabalho foi conduzido pelo Daniel Augusto. A equipe já revirou a revista O Cruzeiro (1928 - 1975), e agora nos dedicamos a escarafunchar O Malho (1902 - 1954). Só na Fon-fon, encontramos cerca de trezentos contos. Nem todos são corpus, é verdade, mas dá pra dizer que o acervo atual por publicar de Tênebra, que já rende aí alguns anos, se estenderá por mais outros.
Ok, ok, o texto começou com uma ode à amizade e se encaminhou prum burocratismo kafkiano. Mas agora as coisas se conectam, porque participar desse trabalho só fez aumentar minha admiração pelo Júlio, o cara mais organizado que conheci. Tudo é muito bem estruturado, as engrenagens funcionam que dá gosto de ver. Se Tênebra chegou aos três anos de idade tão pronta para mais uns cinco, no mínimo, é principalmente graças a isso. É também graças à nossa equipe maravilhosa, sem a qual a gente não chegaria nem ali na esquina.
Agora, considerando todo o contexto, recapitulando de 2018 pra cá, me vêm à mente dois esportes que adoro, o tênis e o boxe: sei que precisamos praticar ambos com gente melhor do que nós. É bem assim que me sinto. Estou em quadra e no ringue com o topo do ranking, e o mais legal é que posso chamá-lo de amigo.
O monge, com tradução e posfácio meus, vem aí
Uma última palavrinha sobre trabalhos recentes. Logo logo deve começar a campanha de financiamento coletivo de O monge, de Matthew Gregory Lewis, o clássico absoluto do gótico, a cargo da editora Sebo Clepsidra. Realizei a tradução desta obra-prima. Boa parte do trabalho aconteceu enquanto eu estava em Alcalá, na Espanha (pertinho de Madri, onde se passa a história do frei Ambrosio, que cai em muitas tentações). O livro só tem uma edição por aqui, um tanto raquítica, a cargo da Pedrazul, e esse projeto da Clepsidra já vinha sendo muito antecipado por aficionados. Traduzi a prosa, e o Douglas Cordare, grande poeta, cuidou dos versos. Também assinarei o posfácio do livro e o Cid Vale Ferreira escreverá o prefácio — é o romance gótico preferido do cara, então você já imagina a paixão que virá impressa nestas páginas.
Em janeiro também publiquei duas colunas na Galileu, uma sobre Nosferatu, do Robert Eggers, e outra sobre o fabuloso romance A corneta, da Leonora Carrington. E tem bastante coisa pra vir por aí. Neste ano publicarei mais ficção, incluindo uma novela e contos em antologias. Em breve falarei deles por aqui.
No momento, te agradeço pela leitura. Daqui a pouco eu volto!
Um abraço,
Oscar
Vida longa às sombras e ao tênebra!
Por aqui trabalhamos brevemente com o Júlio França no posfácio que escreveu para Pavor dentro da noite, de João do Rio. O olhar dele sobre o "locus horribilis" é (mesmo) de iluminar zonas nevoentas. É sempre um prazer publicar textos como o dele.