TerraTreva#30 Na fila pro abismo
Uma edição talvez tétrica, mas não macabra. Pra equilibrar, falo sobre a Sexta-Feira, a cachorrinha que veio do canteiro central de uma rodovia direto pro meu corazón
Certa vez o escritor português António Lobo Antunes disse (ou escreveu, já não lembro) que, quando nossos pais morrem, somos nós que devemos atender a campainha. É quando chegamos à vida adulta pra valer, porque não há mais nada entre nós e a nossa morte. Penso em filas na direção do abismo, milhões delas, cada uma formada por uma família — nossos avós, pais e tios à nossa frente, cada um saltando em sua vez. Chega a hora em que os próximos seremos nós. A pular no abismo ou ver quem tocou a campainha.
Peço desculpas pela abertura tétrica, mas essa é uma reflexão que venho fazendo há bastante tempo, e que ficou mais intensa nesta semana, com a morte da minha tia Ana Thereza, irmã do meu pai. Ela se foi no dia 22 de fevereiro, depois de muitos anos, muitos mesmo, enfrentando doenças diferentes. No final, o que a levou foi um câncer no pulmão, transformado em metástase. Deixa uma filha, Nicole, e, para mim, lembranças felizes da infância.
A questão é que a tia Ana era a última da geração Nestarez anterior à minha. Os dois irmãos dela — meu pai José Eduardo e meu tio Antônio Carlos — faleceram, respectivamente, em 2017 e 2019. Do lado da minha mãe, os Andrade Lourenção, tenho duas tias, Maria Júlia e Maria Luiza; os outros três, incluindo a Maria Cláudia, minha mãe, já partiram. As minhas filas vão diminuindo, o que, claro, me causa temor.
Não digo isso deprimido, de jeito nenhum. É só a constatação do inescapável. Quero ficar bastante tempo por aqui: estou com 44 anos, minha saúde é ótima e desde que me conheço por gente cuido do corpo, seja me exercitando, seja comendo e dormindo bem. Quase nunca fico doente e os exames estão em dia. Mas aqui e ali sinto o chamado da idade. Semana passada, por exemplo, fiquei de molho por causa de uma EPICONDINITE LATERAL, uma inflamação nos tendões do cotovelo. O famoso cotovelo de tenista. Também já operei os dois joelhos por ruptura dos ligamentos cruzados. Tudo por causa de esporte; mas a verdade é que o corpo vai se fragilizando, por mais que o fortaleçamos.
A verdade também é que, apesar de eu ter um convívio precoce com a morte — fui perdendo meus avós ao longo da infância e da adolescência, e minha mãe já no começo da vida adulta, aos 18 anos —, parece que só nos últimos tempos se acomodou em mim a dimensão do fim. Só nos últimos anos alcancei um entendimento mais profundo a respeito da perda. A morte em 2023 do Cesão, um grande amigo (o primeiro que se foi), me obrigou a encarar esse assunto de um jeito que não havia encarado até aqui, acho: a partir da minha própria perspectiva, do meu próprio salto no abismo.
Até então, era sempre a morte do outro, da outra. Acho que eu estava blindado pela juventude, ou por uma determinada percepção da juventude. Nem me dava ao trabalho de pensar que exatamente aquilo pelo que eu chorava aconteceria comigo. Durante um bom tempo fui invencível, até imortal. Muitas vezes esses termos são sinônimos de juventude, não é? Ou, se de alguma forma eu pensava na morte, as cogitações ficavam no subconsciente, recalcadas, espremidas.
Até que, superada a barreira dos quarenta e morto um amigo com quem dividi metade desse tempo, me vi pensando como nunca no meu próprio fim. Não o desejando, nem o repudiando: só pensando nele, espantado por só agora olhá-lo com o devido cuidado. Como se por duas décadas eu tivesse navegado pela vida de lancha, leve e rápido, e de repente me visse num cargueiro com toneladas de contêineres. De repente mesmo, a transição foi rápida. E assustadora, claro. Agora, passados alguns anos, me acostumei a conduzir o navio e até arrisco dizer que o sinto mais leve.
Tem outro ponto importante nisso tudo. Dizem que quando nasce um filho, nasce um pai. Eu nunca quis ter filhos, nunca quis transmitir a qualquer criatura o legado da nossa miséria — hoje sem dúvida mais miserável do que nos tempos do Machadão. Então penso que permanecerei na condição de filho até o fim. Acho que isso aumenta a vertigem que sinto à medida que a fila do abismo anda. A partida da geração anterior assume um significado mais grave. Ainda mais porque, de acordo com os ritos patriarcais, a linhagem dos Nestarez, até segunda ordem, termina comigo. A coisa de os homens serem os portadores do sobrenome e tal (ainda que hoje existam mecanismos legais pra mudar isso). Sou o único homem da minha geração: ao meu redor, só irmã e primas. Não tenho notícias de mais Nestarezes por aí. Ou seja (e sempre em tese), comigo morre a estirpe. Repito que não penso em tudo isso com amargura. Bate uma melancolia, isso sim. Mas não é um sentimento paralisante ou depressivo: é só incontornável.
Por outro lado, e aqui essa edição muda de tonalidade, enquanto estou na fila, olho para trás e o que vejo me encanta como nunca. Acho que pela campainha andar soando mais forte, os tempos em que eu não precisava atendê-la ressurgem resplandecentes. Falo da infância, claro. Nunca me senti tão próximo dela como agora, tão cercado pelas incontáveis memórias que trago dela. Fui uma criança feliz, fosse no meu próprio mundo, onde eu passava horas e horas, fosse neste mundo aqui, cercado de primos e amigos. Brinquei muito na rua, joguei muita bola e videogame, transformei meu quarto num reino mágico e noturno. Tudo reaparece com força no momento em que dou meus passos adiante, deixando o caminho ainda mais bonito. Acho que a beleza é essa mesmo: ver o fim, ter consciência dele, pra aproveitar melhor o trajeto. Preservar o espírito e a curiosidade infantes, amar quem nos ama, fazer feliz quem nos faz feliz, — pra mim a receita é essa. Não deixar de atender a campainha, mas ir bem acompanhado até a porta.
Sextinha na área
Agora, uma tonalidade mais alegre. Já faz algumas semanas que veio morar comigo uma cachorrinha que foi resgatada de uma situação terrível. Antes de contar a história dela, um rápido contexto: talvez você se lembre da Lori Lamby, minha vira-latinha. Eu a mencionava com frequência enquanto estava na Espanha, porque morria de saudade. Por motivos que não vêm ao caso aqui, perdi acesso à Lori desde novembro do ano passado. Sofri demais com a ausência dela.
Até que, no começo de fevereiro, tropecei num story do Antônio, meu professor de boxe, com a foto de uma bichinha assustadíssima e uma legenda perguntando se alguém toparia adotá-la. Ele me passou o contato da Thamara, sua esposa, que foi quem a resgatou. A Thamara contou a história: dirigia pela manhã rumo ao trabalho quando viu a cachorrinha apavorada no canteiro central da Raposo Tavares, uma rodovia aqui de SP. Teve trabalho pra acalmá-la e trazê-la pro carro, mas conseguiu. Deixou a bichinha com uma funcionária, que mal cuidou dela; e depois de várias idas e vindas, apelou pras redes sociais. Fiquei comovido e dividido: será que teria espaço dentro de mim pra acolhê-la?
Concluí que sim. Alguns dias depois, e com o apoio fundamental de my girl Zaia, fui buscá-la no Butantã, na casa do Antônio e da Thamara. Encontrei uma cadelinha fofíssima e realmente muito assustada, estressada. Pela dentição, a veterinária estima que ela tenha uns quatro ou cinco anos. Decidi chamá-la de Sexta-Feira — pelo dia em que a busquei e pelo personagem do Robinson Crusoé, que o salvou da solidão. Ela ainda está se adaptando ao novo lar, mas já perdeu o olhar de pavor com que chegou aqui e meu amor por ela cresce a cada dia. Tanto que geralmente saio para trabalhar em um escritório a alguns quarteirões aqui de casa, mas já faz umas semanas que trampo daqui pra ela não se sentir sozinha. É, o clichê faz todo sentido: quem resgatou quem?
Acho que é isso. Dessa vez não falarei de trabalhos. Tem muita coisa acontecendo, mas deixarei pra próxima edição. Fico por aqui te agradecendo pela leitura e pelas trocas que sempre rolam depois das publicações.
Um beijo,
Oscar
Nossa, essa edição está impactante 😵 a vida carrega uma complexidade de reflexões avassaladoras! Mas sou feliz com a possibilidade de te abraçar e estar ao seu lado quando essas ideias batem à sua porta. Te amo
Maravilhoso como sempre
Tenho esse sentimento da finitude cada vez mais perto ou pelo menos ao meu redor