TerraTreva #4 O que fica em nós de quem vai embora
Na última newsletter do ano, eu pretendia fazer uma retrospectiva de 2023. Mas recebi a notícia do falecimento de uma pessoa querida e decidi falar sobre a permanência de quem se vai
Um dos males de se morar em outro país é o fuso. Na Espanha, estou quatro horas à frente do Brasil. Talvez não pareça algo importante, mas às vezes é. Geralmente durmo “cedo”, antes das 23h, ou seja, antes das 19h do BR, e acabo perdendo a parte do dia em que amigos e familiares costumam estar mais comunicativos. Como bebo muita água, costumo acordar uma vez à noite para fazer xixi (com o perdão do oversharing) e sempre dou uma olhadinha no celular: mensagens e mais mensagens. Logo penso “mais tarde vejo tudo”.
Na madrugada do dia 24 pro 25 de dezembro, Natal, aconteceu isso. Eu estava em Madri, para onde fui encontrar a Isabel, minha irmã. Passamos juntos a ceia no apartamento em que ela estava com a família de uma amiga de infância, a Daphne, no centro da cidade. Uma noite muito agradável, às vezes a gente não percebe o quanto sente falta do calor dos nossos conterrâneos. Aliás, a vinda da minha irmã pra cá foi significativa. No dia 19 de dezembro nos encontramos no museu Thyssen Bornemisza, que tem uma coleção maravilhosa de arte moderna, e depois viemos pra Alcalá, onde a Isabel dormiu. Adorei poder compartilhar com ela um pouco da minha vida por aqui.
Enfim, na madrugada do dia 25, vi uma mensagem de áudio da Taina, minha companheira. Pensei não ser nada importante e voltei a dormir. Quando finalmente acordei, ouvi-a e no mesmo momento senti uma vertigem voraz. Ela contava que havia encontrado o pai, Rubens, ou Rubinho, morto em casa, na noite do dia 24. Ele morava sozinho e não vinha respondendo as mensagens enviadas pela Taina, que achou estranho e decidiu passar lá. Ela estava acompanhada pela Tania, sua mãe, e ainda bem que foi assim. O pai havia morrido dois dias antes e a cena com que a Taina se deparou a marcou fortemente.
A morte do Rubinho não chega a ser uma surpresa. Ele era cardiopata, já havia sofrido alguns infartos e não era exatamente um exemplo de moderação e de cuidados. Mas dois fatos me causaram um aperto que nunca havia sentido: primeiro, estar longe da Taina e não poder confortá-la, pois sei bem o quanto a imagem a marcou e perturbou. Foi uma sensação de prostração inédita pra mim e procurei atenuá-la pedindo a todo mundo que conheço e que a conhece para que enviasse uma mensagem de carinho. Agora, pensando bem, escrever este texto também é uma tentativa de estar mais próximo.
O segundo fato foi como e quando a morte aconteceu. O Rubinho era um cara muito divertido e sociável, com tiradas engraçadíssimas. Senti demais por ele ter partido de dentro dessa solidão, em um período do ano em que praticamente todo o mundo dá um jeito de estar por perto de quem ama. Foi o que a Taina tentou fazer, se aproximar dele – aliás, como ela sempre fazia, a despeito de todas as questões que tinha com o pai, e não eram poucas. Mas quando ela o buscou, ele já não estava por ali.
Por outro lado, e é isso que quero registrar neste texto, uma parte do Rubinho seguirá por aqui bem guardadinha na Taina, e outra na Caire, irmã dela. Arrisco dizer que as melhores partes. Sei que recaio em um clichê ao afirmar isso, mas nessas horas tudo que mais precisamos é de clichês. É a certeza da repetição que traz o conforto no momento em que tateamos no escuro, desacostumados a uma ausência aterradora. Jamais chegamos a superar essa ausência. Só nos acostumamos a ela. Tudo isso é resumido em uma frase que repito a mim mesmo desde que perdi minha mãe, aos 18 anos, e depois meu pai, aos 36, e que se provou mais e mais verdadeira com o passar do tempo: quando amamos quem perdemos, não perdemos quem amamos.
A Taina amava o pai. E não vai perder os olhos levemente puxados dele, os olhos expressivos e acolhedores, sempre na iminência de sorrir, de acompanhar a boca que acabou de soltar algum deboche irresistível. Também não vai perder a sensibilidade e a capacidade de interagir com qualquer pessoa, deixando-a à vontade e com frequência a divertindo, como o Rubinho fazia. Num ponto de vista mais íntimo, posso dizer que a Taina ainda herdou dele o cuidado com os detalhes, a atenção às pequenas coisas. E isso é algo que aprendi com ela durante nosso relacionamento de mais de seis anos – que, vale dizer, se transformou. Hoje, não somos mais casados ou namorados, não estamos mais romanticamente conectados. Mas somos companheiros de vida, basta dizer isso pra que você tenha a dimensão da importância dela pra mim. E por esse aprendizado, agradeço ao Rubinho. Como agradeço por tantas vezes que ele me fez rir, pelos presentinhos que sempre nos dava após as viagens de trabalho. Sempre um gesto por meio do qual mostrava que estava pensando em nós. E aqui deixo este registro de que estou pensando nele.
Também penso muito, muito mesmo, no Cesar Aubert, o Cesão, amigo que se foi neste ano. A morte dele, em decorrência de um câncer no esôfago, foi devastadora. Eu não fazia ideia da porrada que levamos ao perder um amigo, e ainda mais um amigo tão jovem – o Cesão devia ter 43 ou 44 anos, sendo que nossa amizade durou mais da metade desse tempo. Nos conhecemos na ESPM de SP, onde ambos cursamos Comunicação Social. O Cesão fazia parte de um grupo maravilhoso de amigos dos quais até hoje sou muito próximo. A trupe leva o nome de In Da House (IDH) por causa da produtora de filmes “caseiros” que tínhamos na época, e que acabou virando uma instituição da faculdade. Chegamos a montar uma chapa na zoeira para concorrer à gestão do Centro Acadêmico e por pouco não ganhamos, o que seria catastrófico pro pobre C.A.
Em resumo, graças também ao Cesão, a IDH foi a melhor coisa que aconteceu na minha vida durante a fase em que fui um “jovem adulto”. Era – e ainda é – um grupo heterogêneo, de perfis diferentes, mas todos ligados por uma boa dose de porra-louquice, por um senso de humor anárquico, por uma pulsão criativa que eu chamaria de selvagem e por uma agressividade altamente construtiva, embora seja meio difícil de explicar o que é isso. Como estávamos sempre na iminência de brigar uns com os outros de mentirinha, nunca brigávamos de fato. As energias violentas fluíam soltas sem que nenhum de nós precisasse ser violento (salvo raríssimas excessões). Nós nos sentíamos livres e presunçosos, como se sente qualquer jovem com um aparato psicológico saudável. Certo, a vida deu um jeito de nos colocar no nosso devido lugar, mas basta nos juntarmos – o que acontece com bonita frequência – pra gente dar uma bela banana pra essa mesma vida.
E nos juntamos lindamente em torno do Cesão durante a doença dele. O diagnóstico veio em 2022 e já era bem preocupante. Como ele morava fora de SP, em Serra Negra, organizamos viagens em grupo para visitá-lo, lá e depois no hospital da UNicamp, onde ele ficou internado. Era o mínimo que podíamos fazer por um cara que tinha um coração enorme e que, mesmo na condição mais difícil, dava um jeito de nos animar, de se interessar pelas nossas novidades, sempre se lembrando dos menores detalhes, sempre mostrando que estávamos nos seus pensamentos. Ele chegou a reagir durante o tratamento, mas acabou falecendo em junho deste ano (2023).
O Cesão era um cara esquisitão entre esquisitões, e digo isso como o maior dos elogios. No sentido de que tinha uma personalidade singular, capaz de se destacar sem fazer força dentro de um grupo por si já só bem insólito, por assim dizer. Alto, magro, com olhos que pareciam severos mas eram só a carapaça de uma personalidade doce, era doido pelo Japão (pra onde chegou a viajar) e por bolachas Bono de doce de leite. Era doido por frio, também, o que lhe rendeu o apelido de Aubert das Montanhas Geladas.
Eu, particularmente, tinha uma forte conexão musical com ele. Durante a faculdade, como morávamos perto um do outro, fazíamos rodízio pra voltar pra casa, à noite. Às vezes eu o levava, às vezes o pai dele, seu David, nos buscava. Quando voltávamos no meu carro, íamos ouvindo uma seleção muito especial de hits de EBM e industrial, de janela aberta, gritando pra noite paulistana os refrões de Daiminion, do Project Pitchfork, de Nothing stays, do Cyberaktiff, de Quite unusual, do Front 242, entre outros. Eu me sentia invencível e sei que ele também. E pela eternidade desses momentos, realmente fomos invencíveis. É essa a memória mais carinhosa que tenho do Cesão e sei que ela ficará comigo até o fim.
Acho que por essa edição é só. Deixarei pra próxima as novidades de Alcalá, a viagem que fiz para Amsterdã, as leituras e os trampos – com a licença da tia Domingas -, e também uma viagem a trabalho que farei pra Salamanca. Na virada de ano, vou pra Segóvia, uma cidade histórica pertinho de Madri. Ouvi dizer que o lugar convida à contemplação.
Não sei como será seu réveillon, mas desejo, do fundo do coração, que tanto na passagem quanto no próximo ano você esteja perto de quem ama. E que mantenha bem guardadas contigo as pessoas que já não estão por aqui. Eu sei que farei isso.
me identifiquei muito contigo na questão dos horários: eu também durmo cedo e também estou na Europa. Eu acabo respondendo tudo quando as pessoas estão dormindo. E às vezes me deparo com os insones - o que gera conversas das mais inesperadas.
e sinto muito pela perda do teu sogro, Oscar.
morando fora há tantos anos, já passei por todo tipo de situação acerca de luto e eu acho que não estar lá para confortar as pessoas amadas é das coisas mais duras nisso tudo.
fique bem. abraço
Hoje tirei o dia para ler as newsletters das últimas semanas e fui pego totalmente de surpresa por esse texto... Sinto muito, Oscar! De todos os pontos negativos existentes em se morar longe, essa sensação de desamparo num momento de perda é o pior. Em 2019, quando estávamos em Edimburgo, passei por isso: perdi meu avô... Foi muito estranho, porque acordei de madrugada ouvindo a voz do meu irmão dando a notícia. Bateu uma sensação muito desesperadora, mas fui me acalmando. Quando já era no meio da manhã, minha mãe me ligou para dar a notícia. De fato, ele tinha falecido, por volta da hora que acordei. Já sabia que ele estava internado, mas ainda assim foi muito difícil e muito bizarro ter ouvido a voz do meu irmão me avisando... Enfim, fim de ano é momento de alegria, mas também de introspecção. É um momento de valorizar o que temos e lembrar com saudade do que perdemos. Concordo plenamente com você: clichês são tudo o que precisamos em momentos como este. Desejo-lhe e à Taina muita paz e conforto, meu amigo. Feliz em saber que sua irmã estava com você no fim do ano. Nada como ter o carinho da família! Um grande abraço e feliz 2024!