TerraTreva#34 Manifesto contra a "literacura" - e o maior trabalho que já fiz sobre Edgar Allan Poe
Parece que o vício e o mal sumiram das páginas contemporâneas, e humildemente me levanto contra isso. Também falo de um box que organizei para a Nova Fronteira e está pra sair.
Algumas semanas atrás, o amigo Cristhiano Aguiar compartilhou comigo esta entrevista do Georges Bataille, de 1958, sobre o livro que ele havia lançado na época, A literatura e o mal. O filósofo e escritor francês é um dos meus heróis literários do século 20 — sei que do Aguiar também —, e esse livro, em particular, acho precioso. Em uma linha, Bataille diz que a literatura é inseparável do mal. Tem vocação para ele, para colocar o leitor ou a leitora na perspectiva angustiante de que algo vá dar ou já deu muito errado, o que gera tensão. Quando a literatura renega ou se afasta dessa vocação, a tensão desaparece, e o que resta é o tédio.
Tanto no livro quanto na entrevista, Bataille fala de uma “culpa profunda” do escritor ou da escritora por “se colocar do lado do mal”, mesmo que ele ou ela não tenham consciência disso. Baudelaire e Kafka são alguns exemplos mencionados em A literatura e o mal. Ambos estão conscientemente do lado do mal, da tensão que resulta de colocar leitores no centro de uma perspectiva perversa, do reiterado aviso sobre o perigo indissociável de se viver.
Tenho pensado muito em Bataille. Em especial desde que me deparei com o termo “ficção de cura”, uma tendência literária de tempos recentes. Os livros brandos, aconchegantes, cujas histórias se passam em livrarias ou cafeterias, e que tratam de transformação pessoal, que têm como essência o bem estar, a felicidade. Certo, sei que isso é um exemplo descabido: quem busca ficção de cura jamais concordaria com o Bataille, muito menos comigo, e 2025 já está bem longe de 1958. Mas acho sintomático que, nas listas de mais vendidos, encontremos títulos como A incrível lavanderia dos corações, Antes que o café esfrie e Vou te receitar um gato.
Sintomático do quê? De um gesto literário que, me parece, pretende consertar o mundo. Um gesto amplo, que não se restringe a nichos. Por ofício e por prazer, leio praticamente de tudo que me cai nas mãos, de anteontem e hoje, de ficção e não ficção, de “romance de entretenimento” e “romance literário”, contos, novelas etc. À exceção de poesia, que leio bem pouco (ainda pretendo corrigir isso), procuro tomar o pulso da vida pela literatura. É ela, mais do que qualquer outra forma de arte ou comunicação, que me informa sobre mim mesmo, sobre a humanidade ao redor, sobre os tempos idos e os atuais. E tanto nos best-sellers quanto nos títulos mais alternativos, tenho percebido esse impulso generalizado na direção de corrigir o mundo, resolvê-lo, curá-lo.
É perfeitamente compreensível, já deixo claro. Até bebês de colo sabem que o mundo vai mal, mal demais. Uma espiadinha no Uol basta pra que tenhamos certeza de que o abismo está logo ali, à espreita. É compreensível que busquemos na arte o refúgio de um cafezinho quente antes do fim, ou um gatinho pra chamegar, ou um abraço pra nos fazer esquecer de tudo. Entendo o movimento nesse sentido. Por outro lado, o mundo sempre flertou com o caos, às vezes mais, às vezes menos. Nos tempos de Baudelaire, o longo século 19, talvez um pouco menos; mas nos de Kafka, que pegou em cheio a Primeira Guerra e o sinistríssimo período que se seguiu, eu diria que muito mais.
Claro que cada geração reivindica pra si a grandiosidade da coragem, o privilégio de protagonizar o salto no vazio devorador. Mas é de antecipar o salto que Bataille (também) falava. Pra mim, o poder maior da literatura, maior do que de qualquer outra linguagem, é o de nos enfiar na mente e nos sapatos do outro. É o que eu busco ao ler e ao escrever: me perder e me encontrar na dimensão do outro, de sua visão e de sua experiência no mundo. Sei que este mundo, o nosso de hoje, é medonho; mas no conforto da minha cama ou da minha poltrona, tudo o que mais quero é dobrar a aposta, ir mais longe do que alcançam as notícias desesperadoras, ir mais fundo do que mergulham os cortes ultrajantes do Instagram ou do Tiktok. Quero a sensação perene do mal, que não se extingue e não se dissipa, pra poder me familiarizar com ele e também pra perceber o que tem de meu nele.
Nesse ponto faço outra crítica ao que tenho percebido com frequência nas leituras atuais — e aqui me refiro particularmente à literatura brasileira contemporânea. Parece que o vício desapareceu ou se escondeu; só existem personagens virtuosos, ou, se não tanto, com ambições virtuosas e altruístas, buscando os instrumentos com os quais vão remendar, colar os cacos, costurar os rasgos dos tecidos sociais em que estão metidos. Sinto falta até mesmo dos anti-heróis, dos Bentinhos, dos Macunaímas e dos Quincas Berros d’Água, personagens sobretudo falhos e que, se acertam, acertam errando, agindo em benefício de mais ninguém além de si mesmos.
Por isso encontro tanto prazer no horror. Parece que o gênero tem um salvo conduto vitalício pra se comportar mal. Está autorizado a começar, a se desenvolver e a terminar mal. Pode e deve chafurdar no vício, dar a voz principal a monstros, jogar o leitor ou a leitora nas situações mais perversas. Mesmo quando se trata de justamente acertar contas e reequilibrar/consertar as coisas — como no caso do horror feminista ou do horror negro —, a perspectiva em que nos colocamos é aquela recomendada por Bataille, de que algo ruim, muito ruim vai acontecer pra alguém, pra algum ser humano. Quando não pra todos, como no caso do eco-horror.
Com esse desabafo, estou na verdade dissecando meu gosto literário. Não pretendo convencer todo mundo a ler horror; só expresso minha angústia porque, considerando as leituras recentes que fiz, observo a literatura caminhando em conjunto rumo ao conserto, à virtuosidade, à cura. São tempos de literacura, e quis esmiuçar aqui a angústia que me acomete diante disso, tomando as palavras certeiras do Bataille de empréstimo.
Também trato do meu próprio projeto de escrita. Me lembro de que lá atrás, quando comecei a publicar ficção, eu tinha uma espécie de refrão que repetia sempre que podia: “quero dizer coisas feias com palavras bonitas”. Hoje entendo que isso não faz mais sentido, é artificial e presunçoso. Mas sigo querendo, sim, dizer coisas feias, no sentido que me interessa colocar o leitor ou a leitora dentro da cabeça do monstro, atrás de seus olhos, pra que observe o que ele vai fazer. Pra reforçar os laços entre a literatura e o mal, que é tão nosso quanto o bem.
Feito o desabafo, queria compartilhar com você um trabalho bem importante que está pra sair. É o box Edgar Allan Poe - Ficção completa, que organizei pra Nova Fronteira. Completa mesmo: todos os 67 contos que Poe escreveu, mais A narrativa de Arthur Gordon Pym, o único romance. Serão dois volumes de 560 páginas cada, e com um acréscimo importante: a biografia do Poe. Eu a escrevi com base nas duas principais obras biográficas que existem, a do Arthur Hobson Quinn e a do Thomas Ollive Mabbott, ambas sem edição aqui no Brasil.
Os volumes do box se estruturam a partir da história do Poe, e os contos vão entrando no momento em que suas primeiras versões foram publicadas. Como a vida dele foi bem atribulada, e como ainda carecemos de uma fonte biográfica mais extensa, pensamos, a editora Ana Carla Sousa e eu, que esse seria um formato legal. Até pra situar cada conto, do mais famoso ao bem pouco conhecido, dentro da impressionante moldura narrativa que foi a vida do Poe. Agradeço demais à Ana Carla por topar a aventura.
Deu um trabalho absurdo, passei quase um ano nessa costura entre vida e obra — eu a concluí na Espanha, durante o pós-doutorado —, e por isso fiquei feliz por saber que vai sair, enfim. Infelizmente ainda não posso mostrar a capa, mas a folha de rosto e parte do sumário do segundo volume são estes aqui, pra dar um gostinho:
É, de longe, o maior trabalho que já fiz sobre Poe. Vem se juntar a traduções, dissertação, organização de volume de contos inspirados na obra do autor, além de incontáveis artigos, ensaios, colunas e outros textos críticos. Então a expectativa por aqui é grande, e espero que esse trabalho ajude a seguir difundindo a palavra do mestre — que, como “irmão de alma” de Baudelaire (segundo o próprio), entendia como ninguém a dimensão e a importância do mal pra criação literária.
Fico por aqui e te agradeço pela leitura!
Um abraço,
Oscar
Cada vez mais a literatura está se tornando eclética
A variedade de títulos estão cada vez mais frequentes talvez isso seja bom ou não
Achei curioso que todos os exemplos são autores asiáticos (dois japoneses e um coreano) - fui pesquisar porque não fazia ideia de que livros eram esses. Aí fiquei pensando, na sociologia de boteco, na vida dura em países como esses - muito trabalho, pouco lazer, muita pressão e se isso não seria um escapismo...inclusive o google me mostrou que o livro do café já tem continuidade, são 4 volumes. Como falei na última news que escrevi, ando dando preferência às mulheres perturbadas e depressivas (Plath, Woolf) - não é a mesma coisa que o horror, mas tem a angústia ali.